Psicanalise e Psicofármacos

Crítica à noção de sujeito bipolar
Critic to the notion of bipolar subject

Felipe Lessa

Resumo

A polêmica em torno do uso indiscriminado de anti-depressivos tem seu ponto nevrálgico na construção progressiva, por parte da psiquiatria hegemônica, da noção de "espectro bipolar". A expansão desta noção vem construindo uma concepção de sujeito em termos da bipolaridade, tal como ela pode ser tratada pela psicofarmacologia hoje. Não apenas a classe médica, mas também os usuários em geral, além de alguns psicanalistas, começam a compreender o estado de ânimo dos sujeitos segundo o eixo bipolar, tendo em conta as variações de humor mais sutis que alguém possa viver. Indo além do diagnóstico de Transtorno de Humor; Depressivo, Maníaco ou Bipolar, a noção de "espectro bipolar" produz versões mais finas dessas categorias. Entretanto, ao nomear as variações de humor como ciclotímico, distímico e hipertímicos, considerando as sutilezas da oscilações de humor, toda afetividade é transformada em objeto de tratamento psiquiátrico, desencarregando o sujeito de lidar e significar a gama de sentimentos e emoções próprias a seu estado de ânimo. Mais do que criticar os interesses da indústria farmacêutica neste assunto, o que se afigura aqui é a crítica à construção de uma noção de "sujeito bipolar" como forma de simplificação perversa de ideais éticos nos tratamentos.

Palavras chave

Bipolar, Depressão, Mania, Humor, Afeto, Sujeito

Abstract

The polemic among the indiscriminate use of anti-depressives has an important point on the progressive construction on the notion of "bipolar spectrum", by the hegemonic psychiatry. The growing of that idea has been building a conception of subject in terms of bipolarity, as it can be treated by psychopharmacology today. Not just the physicians, but also those who use it in general, and some psychoanalysts, are trying to comprehend the state of animus of the subjects according to a bipolar axe, and looking for the simplest mood variation that someone can live. Going much farther than the diagnostic of Humor Disorder; Depressive, Maniac or Bipolar, the notion of "bipolar spectrum" produces finer versions of this categories. However, naming humor variation as distimic, hipertimic and ciclotimic, one’s that it considers the finest oscillation of mood, it transforms all subject’s affective life in an object for psychiatric treatment. The subject is discharge to deal and to give signification to all feelings and emotions on his humor state. More than to criticize the pharmaceutical industry interests on these matter, what is up to see here is the critic of the notional construction of a "bipolar subject", as a form of a perverse simplification of the ethical ideals on treatments.

Key words

Bipolar, Depression, Mania, Humor, Affect, Subject

Crítica à noção de sujeito bipolar

"I -O Desejo é a essência mesma do homem enquanto concebida como determinada a fazer alguma coisa por qualquer afecção dada. ... II -A Alegria é a passagem do homem, de uma perfeição menor a uma maior. III – A Tristeza é a passagem do homem, de uma perfeição maior a uma menor." 1

O título do presente artigo indica bem aquilo que vamos analisar. Isto é, o fato de que a cultura contemporânea vem construindo um determinado sentido para a compreensão dos sujeitos como seres bipolares. A idéia de bipolaridade, como sabemos, conta com uma larga herança de práticas médicas bastante antigas, mas desde década de 1990, o sentido do dualismo maníaco-depressivo vem sendo recuperado e ampliado para praticamente todos os sujeitos, tomando-os em suas variações de humor e afeto.

Pretendo mostrar que a psiquiatria contemporânea, especialmente aquela ligada à psicopatologia do DSM-IV, trabalha na construção de uma noção de sujeito que fundamenta-se no eixo bipolar, a moda dos transtornos bipolares: das depressões e das manias, das ciclotimias, das distimias e das hipomanias. O chamado "espectro bipolar" vem completar este processo de construção, colocando as peças que faltavam para o estabelecimento de um modelo psicológico centrado nas oscilações de humor. Na prática psiquiátrica e no senso comum, a noção de bipolaridade está sofrendo uma generalização que ultrapassa o intuito diagnóstico que lhe deu origem, de tal modo que, os transtornos de humor terminam por abarcar quase a totalidade do campo emocional humano, tornando possível enquadrar a praticamente todos os sujeitos em seus critérios, seja como diagnóstico principal ou secundário.

A reflexão sobre os humores pede que examinemos em que sentidos podemos considerar a herança histórica da noção de bipolaridade. Se numa mão a tradição em torno deste binômio maníaco-depressivo fala a favor da importância que se deve conceder a este eixo subjetivo, em outra mão, a duração histórica do debate levanta problemas em relação à diversidade de afetos que dão sentido à subjetividade, indicando claramente que a redução da condição dos sujeitos às suas variações de humor exclui muitas possibilidades de análise e de fortalecimento psicológico. Dada a complexidade do material afetivo implicado neste assunto, as concepções relativas aos pólos da mania e da melancolia podem variar muito, o que resulta em vieses importantes nas práticas médicas e psiquiátricas. Assim, cabe situar a especificidade ou a não especificidade dos conceitos atuais de humor depressivo e maníaco, junto com a noção de "espectro bipolar".

Outro ponto sobre o qual nos debruçaremos diz respeito à envergadura dos problemas éticos ligados a concepção de um sujeito bipolar, quando vistos em relação ao uso de fármacos. A cultura médica atual toma o psicofármaco como um recurso imediato e fácil para lidar com as alterações e os sofrimentos dos sujeitos, promovendo-lhes rapidamente o bem-estar. Além da discussão sobre o sentido deontológico da ética médica, o Ethos médico, o costume do uso de substâncias químicas prescritas para influir nos estados psicológicos, entretanto, faz justiça ao sentido amplo da idéia de droga e de drogadição. É inegável que o uso das drogas se estabeleceu entre estilos de vida contemporâneos; sejam fármacos ou drogas ilegais, todos se configuram em diferentes práticas mais ou menos instituídas e, conforme suas finalidades, influem diferentemente na condição psicológica dos sujeitos.

A ambição dos tratamentos químicos do psiquismo propõe a conquista de um estado eutímico (do humor ideal), no qual pode-se viver mais alegrias e felicidades, e com isto propõe que a medicação anti-depressiva seja um valor em nossa cultura. Os cuidados de si e os usos que se fazem ?? do corpo tornaram-se cada vez mais cultos na compreensão do eixo bipolar. Qualquer ingestão de substância química hoje, mesmo com toda sua gama de efeitos variados também nas neuroses, tende a ser interpretada segundo

o eixo bipolar Mesmo que isso não corresponda vis a vis aos processos bio-químicos tal como eles ocorrem, a variabilidade dos humores e da vida afetiva passou a ser vista como uma função dos sistemas de modulação dos neurotransmissores. Na prática clínica, os chamados anti-depressivos tem utilidade no tratamento dos quadros de fobias, pânicos, ansiedades, compulsões, dores crônicas e muitas outros usos coadjuvantes em diferentes tratamentos da clínica geral e de especialidade. O Ethos médico, para o bem-estar de seus pacientes serve-se dos anti-depressivos (neuro-moduladores) operando-os como agentes na competência das eficácias terapêuticas e, em muitos sentidos como agente encorajador ou animador dos pacientes. Assim, a obviedade com que se toma a bipolarização dos sujeitos e a medicalização psíquica dos pacientes, talvez seja apenas a insígnia de um tempo atual, de uma cultura pós-moderna "farmacologizada", mas certamente, em um ponto de vista psicanalítico, ela é uma concessão perversa pois nesta nova prática há uma subversão do Ethos médico a seu próprio favor.

Melancolia e mania

A concepção de um eixo entre pólos produziu sua configuração mais ampla ao longo do projeto psiquiátrico do DSM (Diagnostical Statistical Manual)2. Ainda que seja bastante recente, no processo de construção epistemológica da psicopatologia categorial é particularmente evidente a sorte que a categoria de Transtorno de Humor tem neste conjunto nosográfico. A questão das diferenças de humor tem história e data pelo menos da Antiguidade, encontrou reedições na Idade Média, adquiriu uma clara polaridade na psiquiatria Moderna e, agora, desde o final da década de 1980, voltou à baila, adquirindo progressivamente um estatuto nosológico bastante generalizado. Contemporaneamente, a dualidade ânimo/desânimo, própria ao eixo bipolar, apresenta-se como um largo espectro de oscilação do afeto, sem com isso perder de vista a linha mestra da mania e da depressão que define determinado perfil diagnóstico. Ou seja, o fio condutor da bipolaridade parte de um quadro diagnóstico específico cuja definição, em todas as suas nuanças e variações, estende-se para todos os sujeitos, pois, ao sustentar tal linha entre os pólos de alegria e tristeza, ânimo e desânimo, euforia e melancolia, depressão e mania, termina por expandir seus modelos de interpretação, ocupando-se de incontáveis condições da vida afetiva.

Não iremos revisar a história do conceito de Humor, pois este seria outro trabalho. Iremos apenas indicar a diversidade de interpretações possíveis para este conceito, com o intuito de mostrar quão recente e oportuna é a redução do humor a um único eixo de polaridades.

Na antiguidade, os humores melancólico, colérico, fleumático e sanguíneo serviam de referências para a prática médica em geral e assim seguiram ao longo da Idade Média, variando em suas formas de interpretação e uso; no entanto, apenas circunstancialmente se estabelecia a oposição direta entre o humor melancólico e algum outro humor. Cabe sublinhar, sobretudo, que a noção de humor empregada pelos médicos e pelos alquimistas não se referia precisa e exclusivamente a um estado de ânimo ou a um estado afetivo, pois a doutrina dos humores, antes de Hipócrates, considerava a presença dos quatro humores na formação de um equilíbrio dinâmico da saúde, e não apenas como um estado emocional específico.

Vale observar que o fluxo dos quatro humores, sistematizado no Corpus Hipocrático, foi antecedido pela teoria dos quatro elementos básicos; terra, água, ar e fogo, implicando os estados seco, úmido, frio e quente, respectivamente. Tratava-se, portanto, de uma teoria médica que visava explicar os processos de adoecimento do corpo humano em geral. Mesmo em Avicena ou em Galeno, já nos primeiros séculos depois de Cristo, não se encontra a oposição direta entre o humor melancólico e algum outro, mas era o cuidado com a articulação dos humores e os elementos básicos o que ocupava as práticas médicas.

Entretanto, aquilo que concebemos hoje como um estado de humor deprimido pode ser reconhecido seja na literatura médica ou poética da antiguidade. A despeito do fato de que à época não se fazia esse tipo de diagnóstico, o desânimo, a apatia, a abulia, a tristeza profunda, a falta de interesse pela vida e os pensamentos auto-destrutivos e autocomiserados sempre fizeram parte da vida subjetiva, não importa como fossem descritos. A grande influência da bile negra, própria ao humor melancólico, estava na base das explicações antigas para os sofrimentos vividos como tristeza inexplicável, desânimo e fraqueza, porém, a compreensão do humor melancólico não distinguia entre o físico e o mental. Assim, mesmo se houvesse alguma percepção dos sentimentos melancólicos, tristes e medrosos, ou das emoções furiosas, maníacas e agitadas, será apenas na Modernidade que a melancolia irá adquirir seu sentido específico ligado à dualidade ânimo/desânimo da vida psicológica dos sujeitos.

Como indica Foucault, Thomas Willis, em 1672, "quase chega à noção de maniamelancolia"3 , sendo que os debates sobre a mania, o frenesi, o furor, a melancolia, o delírio e a tristeza continuam servindo à edificação da nosografia moderna em formação. Ao longo do século XVIII, falava-se de folie en duble forme e discutia-se a classificação das manias e das melancolias: panophobia, nostalgia, erotomania, demonomania e outras. Jules Falret, em 1854, escreveu sobre o que chamou de folie circulaire, já em termos dos humores alternados entre a depressão e a mania. Também, contribuindo para o reconhecimento da bipolaridade, em 1882 o psiquiatra alemão Karl Kahlbaum usou o termo "ciclotimia" para descrever a mania e a depressão como estados da mesma doença. Mas será com Kreaplin que definitivamente os estados Maníaco e Depressivo serão polarizados junto às psicoses; o reconhecimento das Psicoses Maníaco-Depressivas tornou-se um elemento fundamental dos quadros nosográficos, permitindo um bom discernimento entre as diferentes formas de psicose, em particular diferenciando-as das Demências Precoces que resultaram mais tarde nas esquizofrenias.

A Psicose Maníaco Depressiva, conforme Kreaplin a descreveu, corresponde bem ao atual Transtorno Bipolar I com sintomas psicóticos, do DSM, e também as "formas leves da doença" já eram reconhecidas e davam margem às reflexões sobre o estatuto das melancolias, das depressões agitadas e dos estados mistos.

O tema das polaridades manico-depressivas foi bastante debatido na psicanálise por Abraham e por Melanie Klein em meados do século passado, mas também na psiquiatria, nos anos 1960, sustentou-se a discussão sobre o humor e a dicotomia bipolar/unipolar. Contudo, o progresso das categorias Bipolares teve seu maior influxo a partir de 1975, com as discussões sobre o Transtorno Bipolar II, que envolve a perseverança da hipomania em certos casos. Em 1980 o DSM-III inclui a distinção entre os bipolares e os unipolares, para logo a psiquiatria falar sobre os estados sub-afetivos, as hipotiminas, hipertimias e as ciclotimias. Em 1983 Hagop Akiskal propõe o conceito de "espectro bipolar", entretanto, apenas em 1994 o DSM-IV passa a incluir os Transtornos Bipolares II. Ao final dos anos 1990 já se contava com estudos de prevalência epidemiológica do espectro bipolar, envolvendo os casos mais brandos de alteração de humor.4 Alguns estudos hoje estimam que espectro bipolar possa prevalecer entre 3.7% e 6% da população ao longo da vida. Já nos anos últimos anos Akiskal, revendo a noção de espectro bipolar, fala em uma classificação geral dos fenótipos; o "duro", ou Transtornos Bipolares I (com ou sem sintomas psicóticos) e os chamados "soft", Bipolares II e mais todo refinamento do espectro bipolar.5

Importa sublinhar aqui que o sentido da bipolaridade na psiquiatria clássica foi diretamente relacionado aos estado psicóticos, porém está claro que os estados de desânimo e de euforia não são uma exclusividade das psicoses. É claro também que, a despeito das estimativas epidemiológicas, os chamados casos "soft", da psiquiatria classificatória, incluindo a maioria das neuroses, são aqueles que nos permitem falar das altas e das baixas no estado de ânimo dos sujeitos em geral. Considerando a dimensão "soft" da bipolaridade, toda a sentimentalidade e toda gama de afetos que possam girar em torno das idéias de alegria e tristeza, de felicidade e de infelicidade, de interesse ou de disposição e de desinteresse e de indisposição, articulados às irritabilidades, aos descontentamentos e às frustrações, enfim, desta forma todo leque emocional de alguém pode ser visto pela ótica, simplificadora, do eixo bipolar. A tradição psiquiátrica moderna ou clássica, no entanto, soube reservar a noção de bipolaridade principalmente para os estados psicóticos, visto que sua extensão no campo das neuroses pode lhe fazer perder sua especificidade.

Podemos pensar, portanto, que a melancolia não acontece apenas nas psicoses. Se a intensidade dos delírios melancólicos nos remete às psicoses, a preguiça e a lassidão pouco envergonhada de muitos discursos derrotistas e fatalistas parecem ser típicas de muitos neuróticos. Assim, a psicanálise reservou o termo melancolia (o qual pode opor-se às manias, sobretudo no sentido amplo da compulsividade) para falar dos sujeitos que sofrem com os sintomas próprios aos estados depressivos, cultivando o mal-estar e identificando-se com suas perdas e suas baixas. Ao tratar a melancolia antes como um estado de espírito, como um sintoma, e depois como o diagnóstico de um padecimento, a psicanálise sempre garantiu o cuidado e a análise das grandes quedas na disposição pulsional e volitiva dos sujeitos. Já a psiquiatria categorial do DSM-IV, para lidar com a diferença entre as oscilações de humor nas psicoses e nas neuroses, estabeleceu o critério diagnóstico que diz; Com sintoma psicótico, ou Sem sintoma psicótico, para todos os Transtornos de Humor.

Os humores e os afetos

Criticar a construção da noção de um sujeito tido como bipolar, como indica o que acabamos de ver, não implica a desconsideração pelas circunstâncias específicas em que o estado de ânimo de alguém oscila, mesmo na vida neurótica mais comum. O que entra em jogo é a redução de todos os sujeitos (que sempre vivem variações de humor próprias às suas condições de vida) ao eixo bipolar que responde aos equilíbrios ou desequilíbrios produzidos pela administração de fármacos, sensu lato, calmantes, estimulantes e estabilizadores.

Talvez pudéssemos fazer uma exegese dos critérios utilizados pelo DSM-IV, pela Escala de Hamilton ou outros protocolos. Porém, a análise das margens interpretativas do ato diagnóstico já nos indicaria que, especialmente quando levamos em conta todo o "espectro bipolar", o leque de significantes possíveis no trato destes critérios abarca quase que todo o conjunto de possibilidades da vida afetiva e emocional de alguém. Cabe lembrar aqui que estes transtornos também foram chamados de Transtornos Afetivos, e que, portanto, o estabelecimento de critérios para o diagnóstico das desordens afetivas de alguém seria uma tarefa hercúlea. Este seria um trabalho exaustivo e provavelmente sem fim, vista a diversidade, a relatividade e proximidade entre os critérios das muitas categorias dos Transtornos de Humor. Mas vejamos em linhas bem gerais o que acontece com a variabilidade interpretativa possível entre as principais categorias.

O quadro nosográfico do DSM-IV apresenta uma grande quantidade de categorias para os Transtornos de Humor. São elas:

Estes podem ser diagnósticos principais ou secundários do sistema multiaxial do DSM-IV, o que significa que o espectro depressivo e o espectro bipolar são significativamente ampliados pela pratica diagnóstica, fazendo-se presentes como coadjuvantes de muitos outros quadros clínicos, como já observamos.

Quando falamos de depressões graves ou severas restam menos margens à dúvida diagnóstica. A brutalidade do desânimo e as fortes características semiológicas, em geral, fazem coincidir o diagnóstico categorial e o diagnóstico fenomenológico.

A percepção, sem um fator reativo, por mais de seis (06) meses, de cinco (05) ou mais dos sintomas descritos entre os critérios do DSM-IV para Depressão Maior, torna-se relativamente evidente o quadro melancólico do sujeito, o que é ainda mais evidente se forem acompanhados de sintomas psicóticos. Cinco de nove; 1) humor deprimido, tristeza, vazio, choros, 2) interesse e prazer reduzidos grande parte do dia, e dos dias, 3) perda de peso, 4) inonia e hipersonia, 5) alterações psicomotoras, 6) fadiga, 7) culpabilidade, 8) indecidibilidade, 9) pensamentos mórbidos e suicidas. O espectro afetivo recobertos por estes critérios indica claramente seu pólo lúgubre ou mortal que nestes casos afeta o sujeito. Excluídas as condições reativas de determinadas circunstâncias de vida, a violência destes sintomas é, grosso modo, bastante específica dos quadros depressivos (caracterizado pelo domínio do afeto melancólico, de luto injustificado e infinito) e merece cuidados capazes de reverter a severidade dos sintomas de desânimo, de morbidez e de desinteresse pela vida.

O mesmo acontece ao observarmos os critérios de Episódio Maníaco, cuja sintomatologia não deixa dúvidas, a menos que pensemos suas gradações até os Episódios Hipomaníacos. Aqui começa a sutileza do problema em questão.

O critério de quatro (04) dias de humor elevado, expansivo ou irritável, presentes em um "grau significativo" e associados a mais pelo menos três sintomas de agitação descritos sumariamente já parece ser bastante problemático. Talvez este critério sirva para descrever um episódio hipomaníaco isolado, um acontecimento psíquico, o que em nada nos indica propriamente um quadro nosológico, e pouco nos diz sobre as características do sujeito que o vive. Cabe dizer aqui que, apenas ao relacionarmos tal episódio ao conjunto dos elementos históricos e emocionais do sujeito é que teremos presente a particularidade de sua vida afetiva e representacional – o que não demanda um diagnóstico específico.

Na hipomania, assim como na distimia, fala-se de determinada variação do humor onde uma pequena constância maior em um dos pólos é patologizada, ou seja, considerase patológica a vasta gama de sentidos que se pode atribuir às particularidades da vida emocional, apenas porque o sujeito manifesta um estilo mais alegre ou agitado, ou um estilo mais mal-humorado ou pesaroso; apenas porque uma pessoa é na maior parte do tempo bastante disposta ou impulsiva, ou porque é carrancuda e queixosa. Os limites interpretativos aqui não são apenas quantitativos, e nem dizem respeito apenas às implicações práticas que tais características possam ter para a vida cotidiana de alguém, mas são limites qualitativos e tocam a diversidade de formas de ser que os sujeitos podem assumir. A redução bipolar ignora essa diversidade (e com ela ignora a particularidade da vida fantasmática do sujeito) acreditando que bastaria encontrarmos o equilíbrio químico de cada sujeito para termos o bom balanço emocional entre a alegria e a tristeza, entre felicidade e infelicidade.

Os critérios para Episódio Misto também dizem pouco sobre o sujeito que vive tal perturbação afetiva. Diagnosticar como portador de um Transtorno aquele que passou, em mais de uma mesma semana, por um (01) Episódio Maníaco e por um (01) Episódio Depressivo Maior, significa desconsiderar todos os efeitos possíveis da história do sujeito que talvez apenas claudique devido a seus próprios impasses e conflitos subjetivos. Entretanto, a repetição diária destes episódios indica claramente que o sujeito desestruturou-se, perdendo-se em oscilações afetivas de curto prazo e sofrendo mais do que o necessários para lidar com sua vida emocional. Assim, embora a descrição dos sintomas de depressão severa e de mania não capture obrigatoriamente o perfil psicológico e patológico do sujeito – o que deixa dúvidas quanto a conveniência de um diagnóstico exclusivo – a insistência de tal grau de variação do estado de humor merece ser considerada como sintomática. Viver episódios maníacos e episódios depressivos pode perfeitamente ser o reflexo de grandes dificuldades momentâneas na estrutura fantasmática dos sujeitos, o que não faz deles portadores de uma desordem que pudesse ser nomeada como Episódio Misto, apenas revela que dois ou mais episódios parecem se misturar ao longo de mais de uma semana.

Quando tratamos diretamente dos chamados Transtornos Bipolares I e II o problema se torna ainda mais delicado. Existem seis conjuntos de critérios para Transtorno Bipolar I, e eles se compõem conforme a precedência e a freqüências dos sintomas maníacos, hipomaníacos, mistos e depressivos. As combinações entre os episódios que podem ser recentes ou anteriores, únicos ou reincidentes, em um dos pólos ou em ambos, que podem ser compostos de diferentes graus de severidade, enfim, essas múltiplas combinações só não terminam por expandir completamente o sentido da bipolaridade pois implicam quase sempre em Episódios de Depressão Maior. Como observamos, a Depressão Maior justifica falarmos numa patologia, seja em termos dos transtornos de humor, ou em termos dos quadros melancólicos. Segundo o DSM-IV, o Transtorno Bipolar II também implica sempre em um Episódio Depressivo Maior, porém, apenas é diagnosticado quando acompanhado de Hipomania, excluindo Episódios propriamente Maníacos ou Mistos.

A Bipolaridade, segundo os critérios do DSM-IV, implica a variação do humor ora considerada entre os pólos maníacos e depressivos, ora considerada entre um nível estável de humor e um dos pólos, observadas, em geral, no intervalo de aproximadamente dois (2) meses. Contudo, tratando-se de pacientes Sem sintoma psicótico, que em um grande número de casos de fato não cumprem os cinco critérios para Episódios Depressivos Maiores, suas muitas variações de humor representam antes de qualquer coisa a condição própria de suas repetições subjetivas. Sendo assim, as variações de estado de ânimo ao longo dos meses indicam a importância da oscilação dos afetos como efeito dos caminhos e descaminhos da vida de fantasias de cada sujeito, de seus medos, fraquezas, inseguranças, dúvidas ou, de suas irritações, ressentimentos, ilusões, excitações, etc. E, secundariamente, a variações de estado de ânimo ao longo dos meses reflete uma oscilação dos afetos dada a descompensação do sistema nervoso que acompanha a vida mental. As tristezas, os descontentamentos com a vida, as culpas e as vergonhas familiares, os saldos auto-depreciativos e as muitas dificuldades narcísicas de cada um implicam em uma massa de afetos que pode ser melhor ou pior elaborada conforme os diferentes momentos da vida e as características (físicas e mentais) de cada sujeito. Entretanto, não podemos reduzir esta complexidade emocional a dois pólos apenas.

O "espectro bipolar" se completa com o papel do diagnóstico de Transtorno Ciclotímico. Na ciclotimia encontrar-se-iam numerosos Episódios Hipomaniacos e numerosos Episódios Depressivos por pelo menos dois (02) anos, mas sem satisfazer os critérios de Depressão Maior. Assim, a ciclotimia diz respeito às oscilações mais sutis do humor, às muitas variações dos sentimentos mais ou menos tristes, mais ou menos festivos, com o maior ou o menor disposição, de forma apaixonada ou conformada, do rancor à generosidade, ou da irritação à condescendência, enfim, a ciclotimia diz respeito as mudanças mais ou menos contingenciais, mais ou menos inspiradas nas próprias fantasias de cada um ao longo dos anos. Naturalmente, a mudança de humor em alguém pode não cumprir um ciclo perfeito e nem respeitar uma periodicidade exata, mas de qualquer modo, ira sempre cumprir-se dentro de algum circuito de repetição. Porém, traduzir todas as variações deste circuito no sentido do eixo bipolar entre o entusiasmo e

o saudosismo, o encantamento e a nostalgia ou, entre outras formas leves do binômio maníaco-depressivo, é perder de vista a pluralidade de sentidos contidos no espectro emocional dos sujeitos.

Ao falar de forma generalizada dos sujeitos em termos do Espectro Bipolar, a intervenção química no estado afetivo de quem sofre parece ser conveniente e, com isso, nos sujeitamos a uma "psiquiatrização" de todas as emoções e sentimentos, transformando-nos em "sujeitos bipolares" que precisam ter seus humores quimicamente ajustados. No entanto, a tristeza e a alegria são sentimentos humanos muito básicos e, desdobram-se na vida mental em uma incontável quantidade de pólos afetivos, de tal modo que, as disposições emocionais de alguém, inclusive as melancólicas, são melhor compreendidas quando consideramos o universo fantasmático que as sustenta em cada sujeito.

A cultura anti-depressiva

A idéia de que nos servindo dos fármacos não precisamos mais tolerar as angustias e os medos cotidianos tornou-se lugar comum; basta ajustar os níveis de recaptação, de bloqueio e de produção dos neurotransmissores e, teremos uma sociedade sem dores psíquicas. O ponto crítico desta cultura contemporânea está em deixar o ideal de felicidade entregue à droga, de forma explícita, declarando suas intenções de pronto e de público; ajuste seu humor e viva feliz! O uso das drogas nos coloca de fato um problema ético de monta. Se podemos ser felizes com um recurso legítimo, como é o caso dos psicofármacos, ou lançando mão de drogas recreativas e ilegais, a regulagem do amplo uso de substâncias psicotrópicas evoca cuidados relativos ao papel das industrias químicas (e do narcotráfico) no estabelecimento da felicidade social.

Se de um lado o cinema e a televisão parecem ser condescendentes com o uso de drogas como a canábis e a cocaína, por outro, as propagandas de calmantes e antidepressivos prometem o bem-estar e a boa disposição para trabalhar e fruir a vida. Anuncia-se os remédios com um belo jovem executivo sorrindo e falando ao telefone de seu escritório, ou com uma bela senhora que caminha bem disposta na rua, sorrindo com sua bolsa sob o braço. A felicidade ao seu dispor! É flagrante a promessa das industrias psicofarmacológicas; use a droga e sinta-se bem. Mas, a promessa de felicidade é flagrante também no discurso médico em geral, pois a idéia de que não se deve sofrer é sempre, compreende-se, muito convidativa, então, prescreve-se a droga para que se viva melhor e sem sofrimento. Hoje, muitos médicos especialistas, endocrinologistas, ginecologistas, gastrologistas, etc, trabalham com os anti-depressivos para favorecer seus tratamentos, configurando uma certa prática psicossomática psiquiátrica. Qualquer jovem psiquiatra está convicto de que se pode ajustar o humor das pessoas assim como o oftalmologista corrige um estrabismo ou uma miopia para se enxergar melhor.

A idéia de aliviar o sofrimento e prorrogar a vida dos pacientes é própria do Ethos médico, assim, é esperado que o médico use sua terapêutica para suprimir a dor e tratar seus pacientes; mas o que importa acrescentar aqui é que ao considerar patológico o que antes não o era, a medicina coloca-se na posição de tratar todo o phatos humano, medicalizando as paixões da alma. Este fato vem sendo denunciado por diferentes autores na Europa e nos Estados Unidos. Os ingleses Ray Moyniham e Alan Cassels publicaram em 2005 um detalhado relatório sobre os procedimentos mercadológicos das grandes empresas farmacológicas, com ênfase no papel dos anti-depressivos que tornaram-se os recordistas em venda no mercado de remédios.6 Stuart Kirk e Herb Kutchins, nos Estados Unidos, já em 1992 apresentaram uma cuidadosa análise crítica dos pressupostos que animaram a elaboração do DSM-III e DSM-IV, apontando para as complicadas relações entre aspectos políticos e econômicos de um lado e, interesses ligados à confiabilidade científica e às práticas terapêuticas de outro.7 Para citar mais uma publicação que corrobora com tal crítica, The Loss of Sadnes, de Horvitz e Wakefild, que buscam alertar sobre a importância de não "patologizarmos" nossos sentimentos comuns, assim como, sobre o papel da psiquiatria e das empresas farmacêuticas nesta transformação do normal em patológico.8

O problema se agrava quando este uso ampliado dos psicofármacos tende a deslocar, na cultura, o limiar médio de tolerância ao sofrimento psíquico, o que fomenta o desejo e a necessidade da droga. Sabemos que a freqüência do uso dos fármacos tende a gerar, a médio prazo, um aumento na tolerância química dos sujeitos à medicação. Assim, um processo de drogadição por psicofármacos, como efeito iatrogênico, tem sido apenas superficialmente analisado naquilo que tem de patológico, o que em longo prazo, contribui para ampliação ainda maior do uso e da dependência social da industria farmacêutica. A esta altura a ética médica que defende a felicidade, por meio de um tratamento simples e pragmático, converge seus interesses com os da industria, e ambos praticam, de modo perverso, a disseminação de diagnósticos e de usos possíveis da nosologia e das drogas.

Já se encontram discussões sobre os efeitos de dependência e abuso de alguns antidepressivos levando a usos crônicos e narcoses variadas. As misturas entre drogas prescritas, drogas ilícitas de todos os tipos e álcool, em uso continuado, representam quadros cada vez mais comuns entre jovens dependentes químicos e habitués de psiquiatras. O sentido amplo da idéia de bipolaridade, na linha do uso refinado dos antidepressivos e dos calmantes, dos estimulantes e dos tranqüilizantes, simplifica os tratamentos mas predispõe ao uso quase indiscriminado das substâncias. Afinal, quase qualquer um pode se reconhecer entre os chamados bipolares "leves", e assim, desejar o controle de suas altas e baixas de humor através da medicação. Além disso, a prescrição de psicofármacos por clínicos de diferentes especialidades médicas tornou-se comum e com isso estas drogas passaram a participar da vida familiar de muitos.

A dependência química se estabelece sob o manto oficial da medicina de resultados, que domina o sistema classificatório do DSM e é pautada pela concepção de um sujeito bipolar. Fala-se em várias novas categorias para os agora chamados Transtornos do Espectro Bipolar9; os critérios se multiplicam buscando o reconhecimento em todos os sujeitos das menores mudanças de afeto, sempre segundo os dois pólos.

Qualquer cidadão, culto ou atento, sem maiores esforços aceita, compreende e identificase ao sentido geral da oscilação bipolar. Afinal, quem não é um "soft" bipolar!?

Ainda, vale observar que a noção de bipolaridade é quase uma redundância, dado que toda polaridade implica em pelo menos dois extremos, dois pólos, e no limite dispensaria o prefixo; bi. Seja como for, a bipolaridade vem sendo refletida, falada e comentada em todos os meios de comunicação, faz parte do discurso psiquiátrico hegemônico e encontra-se na boca de muitos pacientes, ou de qualquer pessoa um pouco mais voltada para as atuais questões da saúde mental. O fato de que a noção de sujeito bipolar esteja se constituindo, no entanto, tem seu principal efeito exatamente sobre os pacientes, sobre aqueles que, então, deixam de compreender suas posições e disposições para a vida e no mundo, limitando-se às lentes da bipolaridade e ao uso das drogas. A construção coletiva do sentido da bipolaridade afeta diretamente aqueles que se servem dela, aqueles que, por fim, desencarregam-se das implicações de suas vidas emocionais e seus estados de ânimo.

No entanto, a vida emocional e fantasmática dos sujeitos é mais complexa que a idéia de uma polaridade humoral, a qual procura capturar os múltiplos sentidos e significações da vida de alguém por um único eixo, negligenciando a etiologia psíquica determinada pelo conjunto de suas condições subjetivas. A redução do sujeito à bipolaridade é uma tentação seja do ponto de vista da oferta psicofamacológica de felicidade, seja do ponto de vista da simplicidade própria à lógica desta redução. Contudo, mesmo se a ciência deva buscar formas de facilitar e favorecer a qualidade de vida dos pacientes, frente a complexidade da psicopatologia não podemos ceder à modelos simplificadores por conveniências alheias às verdades subjetivas de nossa vida mental.

Notas

1 Espinosa, Bento, Ética, Rio de Janeiro, Ed Tecnoprint, s/data, pp. 199 e 200

2 A.P.A., Diagnostic And Statistical Manual of Mental Disorders. 4th Edition. Washington, American Psychiatric Association, 1994.

3 Foulcaut, Michel, História da Loucura, São Paulo, Perspectiva, 2000, p.201

4 Sobre a de prevalência de Transtornos de Humor, Bipolar ou de Espectro Bipolar. Cf.: Lima, Maurício
Silva de, Tassi, Juliana, NOVO, Ingrid Parra et al. Epidemiology of bipolar disorders. Rev. psiquiatr. clín., 2005, vol.32 suppl.1, p.15-20.

5 Larch, Verônica W. Consideraciones Clínicas sobre los Transtornos bipolares especialmente los llamados esppectro bipolar "soft", Revista Medica de la Clinica Las Condes, Vol. 16, n.4, Santiago, Chile, Octubre, 2005

6 Selling Sickness, How the world’s biggeste pharmaceutical companies are turning us all into patients., New York, Nation Books Edition, 2005

7 The Selling of DSM, The rhetoric of science in Psychiatry, New York, Walter de Gruyter, 1992.

8 The Loss of Sedness, How Psychiatry Tranformed Normal Sorrow Into Depressive Disorder, New York, Oxford University Press, 2007

9 Ballone GJ -Transtorno Afetivo Bipolar, in. PsiqWeb, internet, disponível em www.psiqweb.med.br, 2005.


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