Psicanalise e Psicofármacos

Tratamento dos quadros ansioso-depressivos:
integrando farmacoterapia à psicoterapia e outras medidas

Breno Serson

Resumo: Busca-se mostrar que quadros ansioso-depressivos têm o melhor tratamento possível quando se potencializam mutuamente as seguintes modalidades terapêuticas (1) farmacoterapia, (2) psicoterapia e (3) medidas gerais de promoção e harmonização da saúde física e mental, em proporções adequadas às singularidades de cada caso clínico.

A farmacoterapia é discutida como é usada atualmente (sociomercadologia) e como deveria ser usada (uso ético). A psicoterapia é considerada contrastando-se estilos cognitivo-comportamentais com enfoques psicodinâmicos. As medidas gerais enfatizam a desmedicalização e a prevenção de recorrências, através, por exemplo, de atividade física e redução de estressses evitáveis.

Unitermos: ansiedade, depressão, farmacoterapia, psicoterapia, medidas gerais.

 

 

Title: Integrating pharmacotherapy to psychotherapy and general care in the treatment of anxious-depressive disorders.

Summary: We attempt to demonstrate that anxious-depressive disorders get the best possible treatment when pharmacotherapy, psychotherapy and general care measures mutually augment their effects, in individually adapted proportions.

Pharmacotherapy is discussed as it actually used (socio-marketing) and as it should be employed (ethical use). Behavioral-cognitive styles of psychotherapy are contrasted with psychodynamic approaches. General care measures, such as physical exercise and reduction of avoidable stresses, emphasize de-medicalization and prevention of recurrences.

Key words: anxiety, depression, pharmacotherapy, psychotherapy, and general care.

 

Título: Integracíon de la farmacoterapia a la psicoterapia y otras medidas generales em el tratamiento de disturbios ansioso-depressivos.

Resumen: El objetivo de este trabajo es mostrar que los disturbios ansiosos y depressivos reciben el mejor tratamiento quando potencializamos mutuamente modos terapéuticas farmacoterápicos, psicoterápicas y medidas generales de promocíon de salud física y mental, em proporciones adequadas a las singularidades de cada caso clínico.

La farmacoterapia es considera em su uso actual (sócio-mercadologia) y em su empleo correcto (ético). Estilos cogntivos-comportamentales de psicoterapia son constrastados com enfoques psicodinâmicos. Medidas generales, como actividad física y reduccíon de estresses evitabiles, enfocan des-medicalización y prevención de recurrencias.

Unitermos: ansiedad, depressión, famacoterapia, psicoterapia, medidas generales.

 

 

Introdução: o tripé

Ao longo de anos de clínica em psiquiatria, tratando majoritariamente de depressões, fobias, ansiedades mais e menos somatizadas e também pânicas, além de quadros com componentes compulsivos, adictivos e obsessivos, maturei junto aos pacientes um ideal de tratamento constituído por um "tripé" de medidas terapêuticas.

A idéia do tripé é que os quadros clínicos descritos acima - que eu agrupo sob o nome de quadros ansioso-depressivos - têm a melhor tratamento possível quando se apóiam sobre 3 pés ou pilares: (1) médico-farmacológico, (2) psicoterápico e (3) medidas gerais de promoção e harmonização da saúde física e mental.

Nem todos os pacientes necessitam ou dispõe-se a apoiar o tratamento sobre estes três pilares ou vertentes. Por vezes só psicoterapia ou só medicação são prescritas. Na média das consultas pouco se fala sobre "medidas gerais". Neste artigo busco demonstrar o benefício de apoiar, na medida do possível, o tratamento sobre um tripé de medidas.

Medidas gerais de promoção e harmonização da saúde psicofísica incluem mudanças de estilo de vida não suscitadas por cuidado médico ou psicoterápico no senso estrito. Atividade física - ao menos saída de sedentarismos maciços - deve ser sistematicamente prescrita. Prospectam-se as possibilidades de medidas de harmonização tais como yoga, artes marciais ou meditação.

Correção de biorritmos e ‘biocargas’ excessivas ou faltantes, medidas dietéticas e de repouso/atividade complementam recomendações de mero bom senso médico tradicional (redução de estresses evitáveis, férias, atividades criativas, socialização, revisão do uso de medicamentos e substâncias, etc.). As medidas gerais desempenham um papel complementar ou multiplicador da fármaco- e psicoterapia; podem mesmo agir como medida única nos casos especialmente brandos.

Todavia, seja em função da demanda dos pacientes, do pouco tempo disponível ou da super-especialização dos profissionais envolvidos (p. ex., psicofarmacologista, psicólogo, acupunturista), é comum apoiar o tratamento em apenas um "pilar" ou modalidade terapêutica (p. ex., antidepressivos ou psicoterapia ou acupuntura). Em muitos casos, o tratamento melhora visivelmente com dois apoios (p. ex., medicação e atividade física bem dosada; psicoterapia e acupuntura).

A metáfora do melhor tratamento enquanto tripé de modalidades terapêuticas, em proporções adequadas e/ou possíveis a cada paciente acabou se condensando em um gesto com três dedos na escrivaninha do consultório, fincados um a um. Acredito assim propor aos pacientes o conceito de melhor tratamento possível, nos limites da vida paulistana e do que se pode explanar ou debater em uma ou duas consultas, partindo-se de uma plêiade variável de desinformação e preconceito.

A idéia do tripé justifica-se pela estabilidade do bem-estar assegurado ao paciente em longo prazo, bem como pelo ideal ético da desmedicalização e descronificação possível, isto é, passar a cuidar-se para não ter que tratar-se (minimizando-se reagudizações, recaídas de dependências, crises psicológicas...). Creio que esta concepção preventivista tem grande afinidade com o regime de vida harmonizador proposto pela antiga medicina hipocrática (cf. Jaeger 2003: 1001-1059).

O "pilar" inicial é o cuidado médico. Compreende as consultas médicas, com seu imperativo de estabelecer ou refinar um diagnóstico multiaxial (psiquiátrico, psicológico-existencial, de personalidade, de saúde geral, etc.), de iniciar ou melhorar uma relação médico-paciente (vínculo emocional), capaz de fazer que as orientações do médico se transformem em ações terapêuticas conduzidas pelo paciente (em seu pleno livre-arbítrio e autonomia).

O pilar médico converge para o estabelecimento de uma conduta clínica inicial (exames complementares, encaminhamentos eletivos ou de urgência, medicação, orientações a respeito do que fazer e não fazer, reasseguramentos prognósticos e quanto ao vínculo, orientações à família ou círculo próximo ao paciente, etc.).

Tal pilar médico cria condições para tratar e se possível desmedicalizar o paciente em uma escala de vários meses, fincando-se neste tempo os pilares da psicoterapia (escala de anos) e das medidas gerais. Estas últimas têm freqüentemente proposta de duração indefinida, dado que visam desfavorecer condições de recorrências ansioso-depressivas.

 

1- Antidepressivos

Quadros ansioso-depressivos, apesar da sua heterogeneidade, tendem responder notavelmente ao tratamento farmacológico com medicamentos ainda hoje chamados "antidepressivos". A heterogeneidade tratada acaba por criar uma categoria nosográfica, com base na responsividade farmacológica (cf. discussões abaixo e Coser 2003: 43, 59).

Outros medicamentos - neurolépticos, ansiolíticos, estabilizadores do humor – podem ser associados aos antidepressivos quando indicado, cuidando-se para não se cair no exagero de medicar sintomas ao invés de pacientes e buscando uma perspectiva crítica diante de modismos "científicos" em torno do diagnóstico de "transtornos" e co-morbidades (bipolaridades, hiperatividades...) com a banalização do uso de anfetamínicos, neurolépticos e anticonvulsivantes.

O diagnóstico de quadros depressivos e ansiosos cada vez mais se faz presente nos atendimentos psiquiátricos e de clínica geral (recebendo nomes tais como TOC, depressão, "estresse", pânico, fobias). Par e passo, a prescrição de medicamentos psiquiátricos por psiquiatras e não psiquiatras, sobretudo antidepressivos, como terapêutica por vezes única e acrítica, se generaliza e banaliza a olhos vistos.

 

Há razões claras: os novos antidepressivos são muito eficazes em diversas condições clínicas envolvendo ansiedade e depressão; suas avaliações de risco-benefício são muito favoráveis, sobretudo do ponto de vista cardiológico e de problemas de dependência e superdosagem.

Os novos antidepressivos são assim em geral seguros e bem tolerados, tendendo a determinar menos efeitos adversos, mesmo em longo prazo, que os medicamentos que se conhecia até os anos 90, como já estabeleceu enorme experiência clínica mundial.

Suas contra-indicações relativas e problemas tem sido recentemente valorizadas, embora sigam propagandeados aos médicos e pacientes por uma indústria bilionária, uma brain pharma florescente e de ética questionável. Como já aconteceu com calmantes dos anos 60, como Lexotan ou Dalmadorm, eles também têm sido propagandeados e receitados crescentemente por não psiquiatras, por vezes com riscos sérios (p. ex. por não avaliarem sistematicamente riscos de suicídio, uso de outras substâncias psicotrópicas e/ou não firmarem diagnóstico psiquiátrico preciso).

Os não especialistas seguem facilmente propagandas como "levante a moral do seu paciente" ou "dose fixa e igual desde o início, fluoxetina X, 1 cp. de 20 mg/dia" e incorrem também em insucessos por imprecisão diagnóstica e má escolha dos fármacos. Ocorrem abandonos do tratamento quando não se monitora o paciente a fim de titular doses ao longo do tempo, com base na variação dos efeitos adversos e terapêuticos. Observam-se frequentemente sub-tratamentos por não se elevar adequadamente doses ou potencializar o antidepressivo inicialmente prescrito, quando necessário.

Mas mesmo nas mãos dos psiquiatras, o antidepressivo prescrito sem escuta, diálogo e conseqüente obtenção do efeito pharmakon (cf. Serson 2007) acaba por resultar em mais insucessos, efeitos colaterais e sub-resultados do que poderíamos supor a priori.

Assim, o perfil risco/benefício, tão favorável aos antidepressivos modernos, não se traduz nas melhoras e evoluções favoráveis que se poderia esperar através do uso destes novos medicamentos na vida real. Isto se verifica sobremaneira:

Quando são o único tratamento prescrito,

Todavia, a questão vai mais além dos tratamentos incorretos e aqueles sem a devida orientação do paciente. Mesmo com o correto manejo farmacológico, obtêm-se por vezes sucessos terapêuticos pífios ou o abandono precoce, melhoras sub-ótimas (não se obtendo a restitutio ad integrum que é possível em geral em muitos quadros ansioso-depressivos).

Não dispomos ainda de avaliações objetivas a priori (p. ex. exames, perfis neuroquímicos e genéticos) para escolher fármacos, doses, potencializações adequadas. Mesmo o melhor empirismo da ars medica pode encontrar dificuldade no acerto do melhor tratamento de um dado paciente. Com freqüência fica a pergunta se o grau de restituição de funcionamento pré-mórbido foi o máximo e se o perfil de efeitos colaterais seria mais favorável com outro (s) fármaco (s) e doses.

Efeitos terapêuticos e adversos podem sentidos como intoleráveis sobretudo na psiquiatria hoje em voga, que tende multiplicar diagnósticos e assim conduz à polifarmácia, comprometendo percepções de interações, melhoras, pioras e recidivas, por parte dos pacientes e dos médicos.

As taxas de resposta a antidepressivo apresentadas nas estatísticas da psiquiatria clínica americana atual (60-70%), por questionáveis que sejam os critérios, contrastam com os bons "80-90%" anedóticos que acredito serem alcançados em tratamentos no espírito do "tripé".

Isto corresponde a integrar (i) farmacoterapia crítica e dinamicamente conduzida, variando doses e fármacos quando necessário (ii) psicoterapia ainda que breve ou muito restrita e (iii) medidas psicopedagógicas individualizáveis de caráter geral, buscando a promoção da saúde mental, algo como 6 a 10 horas de diálogo com o paciente, ao longo de um tratamento típico de um ano a um ano e meio ou dois anos.

2 – Psicoterapia

Ainda que o paciente não queira ou possa iniciar uma psicoterapia formal - que é frequentemente o caso em quadros ansioso-depressivos - este deve receber uma abordagem psicoterápica mínima. Isto compreende ter seus preconceitos desfeitos ao ser sensibilizado para a importância deste "pilar" terapêutico, que tem menos urgência de ser instituído, mas o que mais assegura uma mudança estrutural. Modificando a maneira do paciente de interagir com o futuro, objetiva-se a melhor estabilidade de bem-estar ao longo da vida, no melhor estilo da medicina preventiva.

Psicoterapia é em geral indicada nos quadros ansioso-depressivos e como sugerem curiosamente alguns estudos, seu resultado dependeria mais do preparo humano do terapeuta e de condições de trabalho do que estritamente da "linha" teórico-clínica seguida (cf. Dubovsky & Dubovsky 2004: 233-249, 253-280). Não obstante, há hoje uma ênfase a meu ver errônea no mero escopo psico-educativo e/ou de mera abolição de sintomas proposto pelas linhas cognitivo-comportamentais. Tal ênfase no aqui-e-agora resultaria em mudanças duráveis?

Técnicas cognitivo-comportamentais, adotadas pelo discurso psiquiátrico de estilo americano, chegam a arrogar-se exclusividade terapêutica, ao proclamarem-se as únicas "validadas" por estudos científicos, com freqüência de curta duração. Psiquiatria malabarista esta, que oscila em poucos anos, de um psicanalismo mal lido em Winnicott sobre a falta de "holding" da mãe à completa mesmerização por estatísticas " e pelo design de studies e scales no estilo DSM.

Neste contexto, abordagens tradicionais como a psicanálise ou da análise existencial, não são atualmente valorizadas. Não cabem na métrica do publicável hoje nos journals dado seu prazo aberto e sua casuística única e pouco reprodutível em padrões tido como "científicos". E assim perdemos muito, já que os quadros clínicos ansioso-depressivos superpõem-se ou imbricam-se - em algum grau - com personalidades ansioso-depressivas e estilos pessoais antes chamados neuróticos e com que é propriamente humano e singular em cada paciente.

Na minha percepção da clínica cotidiana, as abordagens psicodinâmicas constituem as modalidades de tratamento mais aptas a obter mudanças mais profundas e permanentes. Não importa a meu ver discutir se psicanálise ou análise existencial constituem ciência validável, na esteira de K. Popper (cf. Saporiti 1994). Sendo a clínica soberana, os tratamentos psicológicos psicodinâmicos mostram seus resultados com ou sem studies e estatísticas nos padrões hoje em voga e acabam por conservar sua importância no tratamento a longo prazo dos quadros ansioso-depressivos.

Isto é reconhecido por biologicistas mais perspicazes, que chegam a propor uma interface clínica entre psicanálise e neurociências, antecipando um inevitável diálogo, de conseqüências a meu ver imprevisíveis (cf. Kandel, 1999, Andrade 2003).

 

3 – Medidas gerais de promoção da saúde psicofísica

O "pilar", que chamei de "medidas gerais", compreende todo tipo de medida não estritamente médica ou psicoterápica, desde que beneficie o paciente e que este deve praticar e pôr em prática; algo que não recebe em pílulas nem através da reflexão em sofás e divãs.

Como já esboçado acima, as medidas gerais abarcam orientações sobre descanso e atividade física adequadas, de benefício ubíquo, bem como avaliação e orientação nutricional (incluindo inventários de dieta atual, uso de alimentos ricos em ácidos graxos essenciais e vitaminas, precursores de neurotransmissores, etc.).

Busca-se avaliação de rotinas estressantes e desestressantes e suas mudanças possíveis. Deve-se pesquisar sobre medicação e automedicação (p. ex., analgésicos, antiinflamatórios, "relaxantes musculares", laxantes, descongestionantes nasais), uso de drogas psicoativas, lícitas ou ilícitas, incluindo cafeína, álcool, tabaco, fórmulas para emagrecer, soníferos, "suplementos nutricionais", fitoterápicos. Excessos contemporâneos, de exposição à TV, fones, jogos, filmes ou mundos virtuais podem ser sintomas ou fatores evidentes de piora, ainda que pouco diagnosticados ou valorizados.

O viés médico das medidas gerais se confunde com o pilar do cuidado médico que almeja enxergar holisticamente a pessoa que é o paciente. Isto inclui reconhecer e tratar, como um antigo médico de família, todas as condições de saúde desfavoráveis, de micoses a verminoses, do mp3 alto demais do adolescente à falta de aparelho auditivo no idoso, de hipotireoidismos subclínicos a hipertensões arteriais evidentes.

Temos de também considerar a dor nos joelhos que supostamente impediria a atividade física do sedentário, as cefaléias, infecções e alergias de repetição, por vezes complicadas por medicamentos. Contraceptivos, "energéticos" de academia, agentes redutores do colesterol, anti-hipertensivos e corticóides podem, por exemplo, induzir ou piorar depressões.

Em função destes diagnósticos parciais e simultaneamente totalizantes, cuja elaboração demanda mais tempo que uma consulta padrão na rede pública ou conveniada, prescreve-se o tratamento assentado no mais bem estruturado tripé cabível àquele paciente.

Na explicação do tratamento emprega-se idealmente mais tempo que o "padrão", tempo que se reverte multiplicado para o paciente, graças à obtenção do efeito "pharmakon" (cf. Serson 2007: 1-6) e à elaboração de freqüentes fantasias e temores que freqüentemente prejudicam a boa adesão ao tratamento com psicofármacos.

Alguns exemplos destas fantasias são a de ficar dopado, com emoções anestesiadas, a de acabar sob controle sutil de outros, a de viver sob alteração química do eu ou aquela da dependência sensu latu, ainda que sofrendo de efeitos colaterais intoleráveis.

Neste complexo contexto, vejo o psiquiatra atual como este anfíbio médico que é como o antigo clínico que conhecia a vida do paciente e sabia medicar bem, farmacólogo, psicólogo e que ainda propõe tratamentos não clínico-cirúrgicos convencionais, leigos aos olhos da medicina, tais como psicanálise, yoga ou Alcoólicos Anônimos.

Em qualquer caso, tal psiquiatra permanece informado e balizado pelos raciocínios clínicos e bases científicas da Clínica Médica e da Psiquiatria Geral, sempre buscando a melhor ética e isenção, dada a peculiar ascendência e influência do psiquiatra sobre, digamos, a alma do paciente.

O conjunto de medidas terapêuticas proposto pode ultrapassar a atuação do psiquiatra individual e não é sem razão que hoje é consensual a idéia que a atenção à saúde mental deve ser dada por uma equipe multidisciplinar. Assim, como parte das medidas gerais, deve-se saber sem soberba encaminhar o paciente a profissionais médicos e leigos. Paralelamente às condutas médicas ou psicoterapêuticas pertinentes, o psiquiatra prescreve, quando útil, abordagens não-médicas que são terapêuticas.

Podem ser grupos de mútua ajuda como os AA, NA, Jogadores Anônimos e assemelhados. Portadores de doenças como depressão bipolar clássica, Alzheimer e Parkinson beneficiam-se de sites sérios de informação e partilha de experiências. Pacientes outros se beneficiam muitíssimo do legado da antiqüíssima sabedoria oriental, sobretudo da acupuntura e da medicina chinesa e das técnicas de harmonização corpo-mente (yoga, tai-chi-chuan, meditação, artes marciais, práticas zen, e tantas outras).

Nos moldes de Oliver Sacks (que muito me inspira em sua clínica), fazer com que alguém volte a tocar o piano ou o violão pode significar uma volta à vida, mesmo depois de um AVC ou uma grave dependência. Uma associação de bairro ou um clube pode fazer reviver um idoso. Cuidar e conviver com animais pode ser surpreendentemente terapêutico (cf. Servan-Schreiber 2004: 187-192).

O médico atual não deve se abster ou envergonhar de "prescrever" tais gêneros de medidas. Cada medida do tripé terapêutico é mais que aditiva ou somatória, pois acaba por potencializar o tratamento convencional para os quadros ansiosos e depressivos e seus correlatos somáticos (quadros de gastrites, dores lombares, contraturas, sintomas vertiginosos e intestinais, cefaléias, certos zumbidos, insônias, faltas de ar, colapsos, etc.).

Busca-se idealmente encontrar junto ao paciente toda uma dieta de vida, não só dieta alimentar como aquela hipocrática, a isomoiria grega dos regimes físicos e mentais, dos hábitos e do que é "adequado a cada idade e às capacidades que lhe são próprias" (Jaeger 2003: 1006).

Isto pode traduzir-se também em mudanças nas relações trabalho/descanso; ganho/consumo; só/casal/amigos/família/outros. Pode ser mudança física para residências menos estressantes e para mais vida fora de eventos e shoppings, mas pode ser, inversamente, a mudança do octogenário demenciado da casa de bairro para o edifício estruturado e equipado, conveniado a um hospital. Para alguns as mudanças incluem mais (ou até menos) vida espiritual, religiosa ou mesmo esotérica, ou ainda buscas filosóficas de sentido (cf. Marinoff 2005: 33-44).

Podemos recordar o bom senso dos médicos antigos a respeito de hobbies tais como a música, culinária, leituras, coleções, a manutenção de objetos e máquinas, o ikebana, os jogos virtuais e não virtuais, o ubíquo cultivar de plantas e jardins (como recomendava Voltaire) ou o convívio com animais. Início ou retomada de atividades de criação como música, pintura, escrita ou teatro ganham o viés terapêutico da sublimação da qual já falava Freud enquanto "sintoma" social e emocionalmente bem canalizado. O que importa em suma, a decisiva pedra de toque, é que seja algo "psicofavorável" e factível.

Pragmaticamente, a prescrição de medidas gerais deve beneficiar o paciente enquanto "mix" individualizado para aquele paciente em seus desejos e potencialidades. Deve-se, por exemplo, atentar à ressocialização após depressões e surtos psicóticos francos, favorecer a sublimação obtida pelos atos de criação artística, ainda que diletante ou amadora. Insistir na yoga aos "paniquentos" que curto-circuitam a respiração. Incentivar as coleções ou hobbies detalhistas nos obsessivo-compulsivos como remodelagem de sintomas (solução de compromisso) mais socializáveis e geradores de auto-estima e conhecimento do que o adoecer atual e o gozo (cf. Lacan) do paciente em seus sintomas atuais.

Vivendo o espírito da época atual que como tendência geral me parece remeter mais ao patogênico que ao libertário, busco contemplar as boas possibilidades da vida contemporânea. Evoluindo para uma influência inédita sobre a vida humana, o mundo midiático e a Internet já isolam e socializam o planeta num ritmo vertiginoso, seja para quem circula em uma periferia cultural, numa insidiosa "suburban life", em um suposto "top" fetichizado ou nas portas de clubs da moda.

A vida virtual pode divulgar e facilitar o contato humano em torno de interesses específicos (música, encontros, hobbies, interesses técnicos, trabalho comunitário e voluntário, p. ex.); o médico pode usar bem sua retórica ao conseguir que o idoso com baixa mobilidade passe a redescobrir o mundo na rede ou que o jovem deprimido sem perspectiva possa se re-socializar pesquisando e reencontrando gente no YouTube ou Orkut (ou, inversamente, deixar enfim de ter que navegar 12 horas por dia na rede).

Em tese, um enorme conjunto de medidas gerais pode ser proposto, desde que se possa entender o " jeito de ser" do paciente. Minha posição pessoal acaba por privilegiar contrapesos à inflação dos simulacros pós-modernos, tais como tendenciosidades em informações e desinformações, propostas de consumo e "estilo" de um suposto cool, hiperfrívolo e cheio de caretas. Busco pensar contrapontos aos modelos de univocidades narcísicas, desamparos humanos enrustidos, bebedeiras pouco dionisíacas, dopings, shoppings e corpos modelados sem sentido.

A clínica se faz ainda mais desafiadora pelas subjetividades permeadas por securas existenciais amargas, por acelerações inéditas e por valores em crise. Como no filme The Sheltering Sky, de B. Bertolucci (baseado em P. Bowles), chego à imagem desolada da desertificação do real proposta por S. Zizek, (Zizek 2003) e lembro do mundo antevisto na Cultura do Narcisismo (cf. Lasch 1979) e aquele descrito por Z. Bauman (Bauman 1998) em O Mal-Estar da Pós-Modernidade.

 

Notas

O autor é médico (Faculdade de Medicina da USP, FMUSP), especializado em Psiquiatria (H. das Clínicas da FMUSP), doutor em Filosofia (EHESS, Paris) com pós-doutorado em Ciências Cognitivas (PUC-SP). Clinica em consultório particular desde 1993. Agradeço a Sara Hassan, Silvia Ribes e Filipe Doutel pela contribuição crítica e bibliográfica. Email: brenoserson@terra.com.br

Referências

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BAUMAN, Z. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. 272 p.

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DUBOVSKY S. L. & DUBOVSKY A. Transtornos do Humor. Porto Alegre: Artmed, 2004. 325 p.

JAEGER, W. Paidéia – A formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 1413 p.

KANDEL, E. R. Biology and the Future of Psychoanalysis: A New Intellectual Framework for Psychiatry. American Journal of Psychiatry, n. 156, p. 505-524, 1999.

LASCH, C. The Culture of Narcisism: American Life in An Age of Diminishing Expectations. N. York & London: W. W. Norton, 1979. 282 p.

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SERSON, B. (2007) Pharmakon e vínculo: melhorando a farmacoterapia psiquiátrica. Revista do NESME, vol. 4, n. 4, p. 70-78. Versão ulterior disponível em psicomundo.com (foros temáticos).

SERVAN-SCHREIBER D. Curar - o estresse, a ansiedade e a depressão sem medicamento nem psicanálise. São Paulo: Sá Ed., 2004. 298 p.

ZYZEK, S. Bem-vindo ao deserto do Real! São Paulo: Boitempo, 2003. 194 p.


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