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Número 17 - Noviembre 2005

Idosos reconstruindo-se com suas histórias

Patrícia Kok Geribello de Ferreira Cabral
patricia@ferreiracabral.com.br

Memória é ficção...escrevo para elucidar os velhos segredos de minha infância, definir minha identidade e criar minha própria lenda. Afinal tudo que temos com plenitude é a memória tecida por nós mesmos. Cada um escolhe o tom para contar a própria história. (Isabel Allende)

Minha opção por estudar histórias de velhos deu-se pelo convívio com pessoas desta faixa etária, despertando-me o interesse em escutar suas experiências; não vejo as vivências como descartáveis e acredito nas possibilidades da realização de desejos em qualquer idade. Somos submetidos e temos acesso a uma vasta quantidade de informações que não suprem aquelas transmitidas pelas experiências de outras pessoas, por meio do contato direto. O meu interesse pelos relatos dos idosos propiciava uma maior disposição para a conversa ao dividir esses momentos com eles. Escutá-los vinha ao encontro da necessidade deles em contar suas histórias. Mesmo dentro do convívio familiar, lhes são oferecidas poucas oportunidades de compartilhar as experiências, de tal modo que os encontrava solitários e carentes de comunicação.

A experiência vivenciada com um idoso (Sr. Kok) que escreveu a história de sua vida e publicou de forma caseira com o meu auxílio fora motor para inquietar-me a aprofundar o tema. A partir daí, trabalhei histórias contadas por idosos, procurando lhes dar visibilidade ao construirmos um livro. Assuntos como envelhecimento e memória se entrelaçavam desafiando-me a procurar caminhos.

Existe um ditado popular que diz: "Seremos completos na vida quando tivermos um filho, plantarmos uma árvore e escrevermos um livro". Nessa frase podemos interpretar o desejo de continuidade do ser e a necessidade de permanência. Um filho que carrega nossos genes, perpetua a vida através de outra vida. Uma árvore que se planta hoje, perpassa o tempo; sabemos que algumas árvores vivem séculos. Um livro deixa relatos que se perpetuam além da existência do autor. Os membros da Academia Brasileira de Letras recebem a denominação de imortais. Os velhos que encontrei nessa pesquisa já tinham tido filhos e plantado árvores, e o livro...por que não se aventurar a contar e escrever a própria história? Qualquer uma poderia ser contada, mas aquelas que têm como personagem principal o próprio narrador, ganha vida em suas palavras, pontuando definitivamente sua história. A memória resgatada pelos idosos e suas experiências fazem parte desse relato, que pode se transformar em livros, em arquivos de fitas gravadas e até exercer função para uma maior compreensão da sociedade. Para o indivíduo, a memória também tem como função o sentir-se vivo. "Somos quem somos porque nos lembramos" diz Izquierdo (1999, p.9).

A Gerontologia com sua visão transdisciplinar também faz crescer a perspectiva do campo de ação. O estudo do envelhecimento, por abranger diferentes aspectos de um processo humano, pode auxiliar no desenvolvimento de novas maneiras de interagir com os velhos. No Brasil, com tantos problemas sociais, políticos, econômicos, o envelhecimento surgiu como tema de estudos há pouco tempo, no início da década de 70 (Rodrigues, 2001) e estamos desvendando novas formas de atuação. Portanto, se faz necessária a preparação de profissionais nas diferentes áreas, que devem se planejar para o envelhecimento populacional em suas diversas perspectivas – saúde, educação, política, cultura.

Minha intenção ao propor aos idosos que relatassem suas vidas, foi dividir e acompanhar essas histórias com uma escuta cuidadosa, que possibilitasse a troca de experiências e que estes relatos pudessem se tornar posteriormente em produto passível de socialização, seja ele livro ou mesmo um arquivo de entrevistas gravadas e assim, descortinar um relato poderoso e envolvente que se torna um instrumento de aproximação.

Um Breve Panorama sobre o Envelhecer

Ao tratar do envelhecimento, versamos sobre um tema de estudo complexo e uma preocupação recente na sociedade brasileira. Até então, o país sempre fora conhecido como jovem e somente há pouco se percebeu que essa "cara jovem" sofreu mudanças significativas com o passar dos anos. Para uma aproximação do meu objeto de estudo que são sujeitos velhos, uma contextualização da situação do envelhecimento no país se faz necessária.

Os estudos demográficos apontam para o crescimento do segmento idoso, e esta é uma variável nova para a nossa sociedade. Berquó (1996) ao tratar da questão demográfica, nos chama à atenção para essa parcela da população: "O crescimento da população idosa torna-se cada vez mais relevante porque ele já supera aquele da população total".(p.7). O fato é que esta mudança no nosso país está sendo muito rápida.

À medida que se processa este aumento quantitativo da população idosa, esta categoria tornou-se visível aos olhos da sociedade. Uma alteração dessa ordem na demografia não passa despercebida. Berquó (1996), incrementando a variável demográfica, também dá indicações sobre as novas demandas sociais que envolvem o processo do envelhecimento populacional:

Se por um lado, a longevidade dos indivíduos decorre do sucesso de conquistas no campo social e de saúde, o envelhecimento, como um processo, representa novas demandas por serviços, benefícios e atenções que se constituem em desafios para governantes e sociedade do presente e do futuro. (p.27)

Esses dados demográficos e o surgimento de novas necessidades, a partir do aumento da população idosa indicam que, se não tratarmos do assunto, teremos em breve um problema social grave. Não acredito que envelhecimento seja necessariamente sinônimo de problemas; no entanto, estamos lidando com novos desafios, que requerem novos conhecimentos.

Mas afinal, quem é o idoso? Para a definição de metas governamentais e de política pública, no Brasil, considera-se idoso aquele maior de 60 anos de idade. (Estatuto do Idoso, Lei n º 10.741, de 1º de outubro de 2003 – Título I, Art. 1o). Nessa lei adotou-se o sistema de idade cronológica na datação que é definida pelo desenvolvimento biológico após o nascimento, passado um determinado número de anos.

Para Debert (1999), as idades cronológicas em nossa sociedade têm função que se refere, principalmente, aos mecanismos básicos na atribuição da maioridade legal, na definição de papéis ocupacionais e na formulação de demandas sociais, como o direito à aposentadoria. No entanto, segundo os estudos antropológicos, esse sistema está ausente nas sociedades não-ocidentais que levam em conta a incorporação dos estágios de maturidade que é o reconhecimento da capacidade em desempenhar certas tarefas. As categorias baseadas em idade cronológica e que têm uma finalidade em determinado momento, são fruto de uma construção social. A velhice, como categoria, é construída socialmente e, portanto, está sujeita a mudanças em seu significado e concepções, no decorrer das transformações a que está sujeita uma sociedade.

A visão da velhice predominantemente marcada pela passagem dos anos no corpo biológico, deixa de lado aspectos sociais, psicológicos, culturais. O processo do envelhecimento, no entanto, envolve múltiplas dimensões que dão um caráter complexo ao fenômeno cuja tentativa de compreensão por uma única ótica torna seu entendimento fragmentado. O pensamento fracionado, compartimentado, ignora a complexidade dos fenômenos: "Há necessidade de um pensamento que ligue o que está separado e compartimentado, que respeite o diverso ao mesmo tempo que reconhece o uno..."(Morin e Kern, 1995, p.167). O envelhecimento é um fenômeno complexo. Para se pensar sobre o envelhecer, tratamos da diversidade de seus aspectos à procura de uma nova forma de pensar.

O conceito de envelhecimento se representa mediante diversos fatores, e o modo como está sendo tratado hoje em dia tem suas especificidades, não sendo possível generalizações. "Fatores individuais, como temperamento, família, saúde, e fatores sociais, como classe, condições econômicas, tipo de trabalho entre outros, interagem e tornam variável o conceito de envelhecimento." (Secco, 1994, p.7). Enfim, não existe uma velhice, são incontáveis velhices, o que torna o tema desafiador.

Assim, podemos pensar na construção de uma nova velhice que não seja comparada à juventude, como padrão único de beleza e que se diferencie daquela marcada negativamente e pejorativamente pelos processos biológicos sofridos pelo corpo com o passar do tempo. O corpo biológico envelhece, sofre as intempéries do tempo e as ações físicas sobre a matéria. Mas o estereótipo do velho decrépito, limitado, ranzinza, sem perspectivas tende a ser revisto na construção desse novo velho. Mercadante (1997) aponta a subjetividade como negadora desse estereótipo:

Assim, se por um lado, o levantamento das diferenças, das particularidades exibidas individualmente remetem para a negação do modelo geral, por outro lado, essas mesmas e tantas outras novas particularidades podem ser trabalhadas pelos indivíduos para a produção de um novo sujeito velho. Assim, esse novo sujeito velho se produz, não se produz na contraposição a uma "alteridade jovem", mas sim a partir de uma "subjetividade" negadora da identidade estigma. (grifo da autora) (p.32)

A produção de sujeitos, com elo no mundo exterior, é um processo contínuo e possibilita a construção de novos referenciais. Desta forma, tratar a velhice e enquadrar todos os sujeitos em um mesmo rótulo objetivo e cristalizado impede inseri-los num contexto social e tratar de suas subjetividades.

Nesse panorama se incluem os sujeitos que estudei, velhos que estão se tornando visíveis, mas ainda lutam contra preconceitos que os classificam de forma estanque. As pessoas buscam novos modelos, mas algumas vezes sucumbem e se anulam frente à busca pela eterna juventude. Messy (1993, p.15) indica que: "Se fizermos pender o envelhecimento para o lado da perda, constataremos que concerne a todas as etapas da vida e não apenas à última."

A possibilidade das aquisições na velhice está ligada à própria história do sujeito: "Envelhecemos como vivemos..." (Messy, 1993, p.12). Portanto, falamos de um aspecto subjetivo do indivíduo. O envelhecimento é um processo que se inicia ao nascimento, se "...inscreve na temporalidade do indivíduo, do começo ao fim da vida." (Messy, 1993, p.13). Nesse sentido, abrimos uma gama de possibilidades aos que envelhecem e, na perspectiva criativa, podemos junto aos idosos sempre descobrir caminhos.

A Arte da Escuta

Na tarefa de descortinar novas possibilidades aos velhos, proponho uma escuta junto a quem se dispõe a contar suas histórias, que depende da entrega do ouvinte para que haja ressonância e sentido nessa relação. O encontro entre dois sujeitos envolve processos subjetivos e, nesse campo, a palavra ou silêncio representa um meio possível de troca, pela qual poderá se estabelecer um canal de comunicação. Nesse estudo, a frase preconceituosa "velho, que diz sempre a mesma coisa, é tão repetitivo", não poderia prevalecer. Será o velho repetitivo ou um ser que expressa a falta que o outro lhe proporciona?

No nosso tempo, conforme a vida passa e envelhecemos, as oportunidades de novos encontros e construções de novas relações ficam restritas. A tendência é de um isolamento e este pode ser um dos motivos de haver tantos velhos, que não tendo com quem falar, à procura de diálogo, acabem por fazer monólogos repetitivos. O diálogo pressupõe duas pessoas, em sintonia, estabelecendo uma relação significativa e flexível de ouvinte e narrador.

Para Goldfarb (1998) a escuta adequada para quem se dispõe a repartir com velhos suas reminiscências poderá auxiliar a elaboração da história por eles vivenciada, desde que calcada numa relação significativa. A reminiscência tem função de elaboração, no entanto, o estímulo para que ela ocorra está vinculado a uma atividade relacional.

A reminiscência pode então ser compreendida como uma forma de exercício da memória histórica, que não conseguirá ser elaborativa se esbarrar na falta de eco no outro e de aproveitamento do relato por parte do meio social; mas que impedirá a depressão se achar um meio de escuta adequado.(Goldfarb, 1998, p.82)

Do que falam esses velhos senão deles mesmos? As histórias de vida, resgatadas pela memória, podem ser elaborativas e promover uma valoração narcísica. Salvarezza (1991) define o narcisismo na velhice como o valor que o sujeito pode dar ou não a si mesmo.

Calligaris (1998) traz a idéia de que o ato biográfico é constitutivo do sujeito. Para o idoso, haveria a possibilidade da construção e ressignificação da própria história, ao contá-la de modo que permita uma elaboração.

O sujeito que fala ou escreve sobre si, portanto, não é o objeto (re)presentado por seu discurso reflexivo, mas tampouco é o efeito, por assim dizer gramatical de seu discurso. Falando e escrevendo, literalmente, ele se produz.(p.49)

Para a produção desse sujeito, a partir da própria história, a narrativa inserida num contexto comunica algo ao outro que a escuta (seja pesquisador, ouvinte ou leitor). Quando chamei esse item de Arte da Escuta, me referi a essa relação que possibilita a narrativa, a criação e a produção do sujeito. Quando um idoso conta sua história, ele busca o conteúdo dessa narrativa na evocação de sua memória.

Tramas da Memória

Os caminhos da memória são tramas permeadas por aspectos sociais e individuais, que como um tecido formado por fios entrelaçados, podem ser conhecidos pelas evocações das lembranças, em determinado tempo e lugar e requerem um aparato psíquico. O que lembramos e como nos lembramos se constrói num movimento da demanda social e interna do sujeito. Como nos explicita Halbwachs (1990) a inter-relação com o meio social alimenta as lembranças individuais.

A memória não é una, é plural, e vai sendo construída pelo indivíduo em seu meio social. Ao evocar, as correlações que sustentavam as lembranças podem ser modificadas, daí a memória requerer trabalho psíquico. Bosi (1990), a partir das idéias de Halbwachs complementa esse aspecto da memória como trabalho de reconstrução:

Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho.(p.55)

Se memória é trabalho, se implica em movimentos psíquicos de ligações, re-ligações numa nova construção, não é uma simples acumulação de recordações, é uma construção que forma a trama significativa no presente. Essa construção se dá a partir das inúmeras marcas mnêmicas que se formam desde que nascemos e são apreendidas de modo pessoal e subjetivo. Sendo assim, um mesmo fato vivido por duas pessoas pode ser lembrado de modo completamente distinto (nem por isso é inverdade), dependendo do modo como foi percebido e das ligações subseqüentes efetuadas em cada psiquismo.

As lembranças têm o passado como conteúdo e podem ser compartilhadas no presente por intermédio da comunicação. Essa característica, se elaborativa, lhe dá possibilidade de novos arranjos sobre o conteúdo e de continuidade no presente.

No trabalho com memórias de idosos, a matéria-prima – passado – é extensa, a narrativa requer um contexto relacional e a oportunidade de socializá-la pode aprimorar a construção de um lugar significativo em que eles sejam valorizados e se valorizem. Bosi (1990) em Memória e Sociedade, numa pioneira incursão pelas memórias de velhos, aponta alguns caminhos em relação à importância de dar-lhes voz. Ela indica que a memória também pode nos ajudar a compreender amplamente a sociedade em que estamos e suas mudanças no decorrer do tempo, além de propiciar ao velho uma reconquista, um auto-aperfeiçoamento.

Um mundo social que possui uma riqueza e uma diversidade que não conhecemos pode chegar-nos pela memória dos velhos. Momentos desse mundo perdido podem ser compreendidos por quem não os viveu e até humanizar o presente. A conversa evocativa de um velho é sempre uma experiência profunda. (p.82).

Goldfarb (1999) dá especial significado à reminiscência, como elaboração significativa para idosos. Seria o que chamo de trabalho da memória, que é possível para alguns idosos e implica em reafirmar sua existência no tempo. Assim, citando a autora em relação à reminiscência:

Como forma de reafirmação do existir, provoca um encurtamento do tempo transcorrido, na medida em que presentifica os fatos relatados através de uma reafirmação narcísica. O idoso reminiscente nos diz ‘eu sou tudo isto que lhe conto, embora não o pareça’, ‘o tempo passou, mas eu permaneço’. (p.82).

Rememorar, lembrar, recordar envolvem movimentos cuja função também é de localizar o indivíduo; a própria identidade busca, na memória, uma atualização, sendo este o velho reminiscente, apto a mudanças. Souza (1999) contribui dizendo que:

Algumas pessoas, por desconhecimento, acreditam que reminiscência é uma prática melancólica, que incentiva o narrador a ficar preso às lembranças. Essa é uma idéia errônea, uma vez que a atividade da reminiscência coloca no presente as situações passadas, oferecendo a oportunidade para a reflexão sobre quem e o que somos, a fim de considerarmos os diferentes meios pelos quais possamos preparar e encarar o futuro. Ignorar o que passou é ignorar a história. (p.29)

No entanto, o trabalho com a memória de idosos e suas hist órias, para ser significativo, deve ser trilhado nas relações estabelecidas por quem os escuta e acredita nesta elaboração. As histórias não serão repetitivas, basta ater-se aos detalhes para que possamos perceber o movimento experimentado no ato de lembrar. Mercadante (1997) sugere a memória como apoio para explicitar a identidade e inventar uma nova subjetividade para o idoso. Brandão (2002) ainda explicita:

Esse processo de reconstrução através das memórias mostra a identidade como categoria dinâmica, construída, múltipla e, passível de ser atualizada e, ainda, a maneira como ela acompanha a construção de um sentido para nossa trajetória, que narramos como história. (p.183)

Enfim, escutar relatos das histórias de idosos pode ser um trabalho com memória, criador de novas possibilidades para o ser que envelheceu.

Caminhos Percorridos

O meu objetivo no trabalho foi criar condições para captar e dar sentido às experiências vividas por idosos, transformando-as em relatos escritos – livros – por meio do processo de coleta das suas histórias. Durante a pesquisa, pude experimentar que esse processo implica em vivências e trocas que vão além do produto seja a pesquisa ou o livro e, dificilmente, dará conta de abarcar em toda sua extensão o que se refere a esse encontro de pesquisador/pesquisado.

Na pesquisa qualitativa, o significado que as pessoas dão à sua vida é respeitado pelo pesquisador. Além disso, os idosos envolvidos, ao serem escutados, estão se ouvindo e tendo possibilidade de uma ressignificação participativa de suas histórias.

O estudo se baseou nos recursos da história de vida que tem como característica ser o narrador quem decide o que vai ser relatado e o pesquisador, uma escuta o mais silenciosa possível. Segundo Queiroz (1987), "a história de vida se define como o relato do narrador sobre sua existência através do tempo, tentando reconstruir os acontecimentos que vivenciou e transmitir a experiência que adquiriu." (p.6).

Ainda em relação ao recurso metodológico da história de vida, Pollack (1989) diz que em cada uma que colhemos por meio de entrevista oral, encontramos um fio condutor, um núcleo resistente que caracteriza o narrador. As histórias se referem aos acontecimentos na vida de alguém e as correlações dessas experiências vão se construindo no exercício do relato. Nesse sentido, o depoente tem a oportunidade de reconstruir e ordenar a existência.

O sujeito que conta sua vida a alguém, estabelece certa coerência em sua narrativa, geralmente apoiando-se em acontecimentos-chave numa ordem cronológica e há uma ordenação de fatos que o envolveram. Nesse movimento, o sujeito vai se localizando, definindo seu lugar social e suas relações com os outros.

Na coleta de dados, utilizei outro recurso da história de vida: as imagens, fotos, recortes de jornal da época tratada, cartas, artigos técnicos, livros em que o sujeito é citado e alguns objetos significativos trazidos pelos depoentes durante o processo e que também deram corpo ao estudo.

O uso do gravador foi um auxiliar importante, pois, além de trazer de viva voz as emoções contidas nos relatos, possibilitou ao pesquisador concentrar-se na relação, uma vez que não havia necessidade de anotar. Então, obtive uma produção de várias fitas-cassete contendo as entrevistas. A seguir, tínhamos dois produtos da narração inicial: as fitas e as transcrições, que ainda não eram as histórias de vida em forma de livro. Entre a fala e a escrita, se percorreu um caminho que leva em conta a preparação do texto, as revisões e a edição, o que tornaria possível a leitura e a compreensão por aqueles que não viveram o processo de coleta de dados, visto que pretendia que os sujeitos tivessem participação ativa em todo o processo.

Apresentando os Sujeitos

Como já expus, o primeiro sujeito com quem trabalhei e justificou a pesquisa foi o Sr. Kok (80 anos) que construiu um livro a partir de sua história. O que mais me chamou atenção nesse processo foi a função benéfica que o projeto teve em sua vida. Ele que num primeiro momento mostrava-se receoso - Será que a minha história é realmente interessante? - pôde refletir sobre sua vida e ocupar um novo lugar, valorizado, em seu meio social durante o andamento do projeto e, posteriormente, com sucesso do livro.

Isto é, o trabalho fora como uma renovação, um sopro de ar fresco na busca por projetos e interesses por outras pessoas. Ele pesquisou para incrementar as histórias, buscou conversar com quem partilhara a mesma situação e trouxe em todos os dados vivenciais uma profunda reelaboração, perguntando-se, atualizando-se no próprio relato escrito. As imagens e fotos utilizadas na edição final do livro deram vida ao trabalho e são atraentes para qualquer leitor, porque podemos ver as pessoas e os lugares a que ele se refere e essa também é uma forma prazerosa de atualização, pois, vêem-se hoje com o referencial que se tem, imagens de outros tempos.

A partir da experiência com o Sr. Kok, a idéia da construção de um livro a partir da história de vida foi ampliada para outros três sujeitos: D. Ana, Sr. Tomás e Sr. Francisco. Diferentemente do Sr. Kok que por ter facilidade escreveu a própria história, com os outros personagens propus realizar entrevistas gravadas para a coleta de dados; afinal, não são todas as pessoas que têm afinidade com a escrita.

Com D. Ana (76 anos) pude perceber que o significado da proposta de início assustadora, despertou desejo logo no primeiro encontro. Ela falou sobre a infância e adolescência e mostrou um livro com fotos de lugares que freqüentava. Envolveu-se durante duas horas e mostrou interesse pelo projeto. No final, fui informada por familiares que ela sofria de Alzheimer. Essa informação tornou-se um desafio a mais, pois o desenvolvimento de conhecimentos sobre esse quadro expande-se a cada momento e aquela seria uma oportunidade de aprender mais. Porém, a seguir, os familiares alegando que o médico desaconselhara conversar com ela sobre o passado, desmarcaram o encontro seguinte. Insisti em um fechamento, afinal, D. Ana mostrara-se interessada. O segundo encontro foi realizado na casa de repouso onde reside e ela lembrou-se da proposta, mas demonstrou oscilação em assumir o projeto como nova possibilidade pessoal ou ficar na dependência de opinião de terceiros, em seguida falou: Aqui é ótimo. (esforçando-se para acreditar) Eu não tenho que pensar em nada, fico com a cabeça vazia, sem preocupação. Será que a cabeça fica vazia ou a vida para essa idosa fica vazia e as lembranças vão se esvaindo, perdendo o referencial, caminhando para uma "situação de Alzheimer"? (Goldfarb & Lopes, 1996). O subtítulo desse caso fora "Cerceada toda a vida" e resume um pouco a experiência que vivenciamos. D. Ana que num primeiro momento mostrou-se disposta e interessada, em decorrência de questões familiares, não pôde continuar o projeto.

Com Sr. Tomás (86 anos) tive um encontro que fora marcado por familiares acreditando que o projeto de relato de história de vida pudesse ser interessante para ele. No entanto, naquele momento ele se sentia um homem doente, sem disposição para falar de si e não aceitou a proposta que parecia atraente para seus familiares. Trago esse caso, apesar de não ter tido continuidade, para enfatizar que a disponibilidade do sujeito é fundamental para qualquer projeto e deve ser respeitada.

Com relação ao Sr. Francisco (86 anos), o processo de construção do livro está em andamento. Temos um vasto material composto por entrevistas gravadas, transcrições, textos revisados e o início do livro. Esse trabalho contou com a participação ativa dele que percebeu o processo como possibilidade de reexame de vida. O envolvimento e a disponibilidade em rememorar a partir da nossa relação também se mostraram prazerosos. Nunca imaginei, na minha vida que isso fosse ser tão prazeroso, para mim está sendo gratificante contar essas histórias para você. Num determinado momento, com o objetivo de dar forma literária ao material, experimentamos o trabalho de um escritor contratado – Está poético, mas não sou eu nessa apresentação. - mostrando como o processo vivido é mais importante do que o produto final. Para o Sr. Francisco, o trabalho com a memória permitiu novas evocações, uma maior fluidez e facilidade em relembrar, além de uma valorização própria e das pessoas ao seu redor, visto que a família também relatou uma maior disposição dele com a vida.

Últimas Constatações

Os sujeitos idosos que se dispõem, com coragem, a narrar suas histórias podem se beneficiar do trabalho de memória; e mais, derrubam o mito de que velhos são rígidos e têm dificuldades em aceitar transformações. Escutar, elaborar e escrever a própria história abrem portas para que ocorram mudanças. Relembrar não é estar preso a um passado que não volta mais, mas é falar do passado, com as referências atuais no tempo presente, recriando-o.

O trabalho, realizado com os sujeitos dessa pesquisa, também foi construído no andamento do processo, com cada um deles, num incessante repensar da prática, compartilhada com a instrumentalização teórica. Não é possível nessa perspectiva de construção apresentar uma fórmula rígida e pré-estabelecida. Este jogo entre a teoria e prática se complementando são a marca do método criado para cada sujeito. Detive-me na importância das relações, procurando compreender que a proposta pode trazer uma oportunidade nova para esses velhos. O convívio e a escuta do outro como instrumento de trabalho e criação propiciam interesses e prazeres para aqueles que têm suas possibilidades de contato diminuídas pela própria característica de nossa sociedade, que valoriza o novo, o rápido.

Essa metodologia de ação na construção de um livro de memórias com idosos pode alcançar a todos dispostos a escutar seus velhos e aqueles que acreditam no potencial da memória como construção de um lugar significativo e atuante. Sendo eu psicóloga, adentrando pela Gerontologia, muitas vezes me questionava: mas afinal, o que estou fazendo? A proposta inicial de construir um livro a partir das histórias de vida de cada sujeito, em nenhum momento foi confundida com o processo de psicoterapia. No entanto percebi que esse tipo de metodologia de atuação com idosos pode ter seu componente terapêutico.

Procurei apontar como esse modo de trabalho pode ser benéfico tanto para quem escuta como para quem fala, numa relação interpessoal que sustenta e dá sentido à continuidade da experiência. O processo de evocação da memória pode, além de propiciar uma reconstrução significativa, já que se constrói num movimento da demanda social e interna do sujeito, reafirmar sua existência no tempo, localizar o indivíduo e nessa atualização provocar mudanças.

Mesmo que haja certo receio inicialmente, cabe dizer que a conversa evocativa com o velho é sempre uma experiência profunda que demanda cuidado podendo até ser prazerosa e criativa, desde que inserida numa relação de confiança e respeito.

As lembranças, que fazem parte de toda a trama da memória são interligadas, uma puxa a outra e, assim, vão recriando o próprio sujeito em toda sua vida. O exercício da narrativa demanda tempo e certa organização, proporcionando uma reapropriação do tempo vivido, dando novos significados para as experiências. Este processo exigiu uma flexibilidade de postura, uma vez que não era possível delimitar a duração de cada trabalho. Por exemplo, Sr. Kok conseguiu fazer o primeiro volume de seu livro em um ano, Sr. Francisco, várias vezes disse "...Não tenho pressa...", referindo-se à finalização do livro. Convém lembrar que ainda estamos trabalhando e ele está envolvido e motivado, assim como seus familiares. Para tanto, o narrador precisa querer se comunicar com o ouvinte ou o futuro leitor e o contexto ao seu redor propiciar o cenário para que transcorra a ação. Sr. Tomás não queria, não podia, sentia-se impedido; Dna Ana oscilava em assumir a oportunidade que lhe fora dada ou sucumbir ao trágico modelo, tornando-se uma "velha-com-Alzheimer" um rótulo delimitado em que não há perspectiva nem desejos, mas com o corpo cuidado pela família e pelo asilo, situação que me faz pensar sobre a impotência perante alguns casos.

Os encontros com esses velhos foram oportunidades de reflexão sobre possíveis modos de envelhecer, com a clareza de que não há caminhos preestabelecidos e nem fórmulas. A proposta prazerosa para um pode ser assustadora para o outro; mesmo assim, aqueles que puderam se sentiram valorizados, como Sr. Francisco e Sr. Kok que claramente construíram, a partir de suas histórias, projetos de vida.

Notas

1 Este texto nasceu a partir da minha dissertação de mestrado, com o mesmo título, defendida em 15/04/2002 na PUC-SP pelo Programa de Estudos Pós-graduados em Gerontologia, sob a orientação da Profª Draª Ruth G. da Costa Lopes.

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