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Número 26 - Agosto 2010

Memórias e Narrativas.
Paisagens do passado

Vera Maria A. Tordino Brandão.
veratordino@hotmail.com

Resumo.

Este artigo reflete sobre as articulações que se mostram no tema Memórias em suas formas de expressão - as narrativas - especialmente, por meio da linguagem nas palavras faladas e escritas, e que por meio delas se constituem.

Cada narrativa é única e se constrói no ato de falar e / ou escrever. Os acontecimentos, e experiências, passados estão registrados na memória, mas este fato não os torna acessíveis a nós no momento que queremos evocá-los - não lembramos o que queremos e quando queremos.

Por outro lado, muitas vezes, nos sentimos atravessados, "assaltados", por lembranças imprevistas de fatos que julgávamos sem importância, esquecidos, ou dos quais não queremos lembrar.

Este é um dos muitos "mistérios" e armadilhas do processo de lembrar e esquecer, que desafiam a todos os estudiosos do tema, e causa especial espanto na maior parte das pessoas, especialmente na fase do envelhecimento. Por que me lembro? Por que esqueço?

Surgem "os fantasmas" do esquecimento patológico, o medo de lembranças traumáticas, as ressalvas relativas ao "memorialismo" que leve à melancolia não salutar, incluindo-se os ressentimentos que ficam como que "latentes" nas lembranças de acontecimentos não resolvidos, interna e externamente.

Estas são considerações importantes quando abordamos os temas memórias e envelhecimentos, pois a nossa construção histórica – quem imaginamos que somos ou quem gostaríamos de ser – impacta de maneira significativa o modo de viver - envelhecer e longeviver .

Focando a vertente da memória social voltamos à questão dessas narrativas, constitutivas dos sujeitos, pois a cada narrativa uma nova história é contada, já que ela não está inteira, pronta dentro de cada um - fazemos um arranjo novo e, muitas vezes, diferente para oferecer uma melhor apresentação ou versão de nós mesmos. A memória social é composta pelas memórias individuais e coletivas, ambas abrangidas pela memória histórica, que as organiza e qualifica. Mas, se entrelaçadas nos parecem como um t odo, na realidade a força da memória social reside nas memórias individuais – pontos de vistas únicos sobre determinados acontecimentos vividos individualmente em meio ao grupo social. O mesmo fato, vivido coletivamente por vários indivíduos, resultará em relatos semelhantes, mas nunca exatamente iguais, pois cada relato vai adquirir o "tom" de seu narrador, uma percepção única - como uma "impressão digital" - determinada por inúmeros fatores – faixa etária, gênero, escolaridade, nível sócio-econômico e cultural – determinantes, de certo modo, do lugar social do narrador.

A subjetividade é fundamental na incorporação dos fatos vividos, pois cada individuo mesmo partilhando de uma "comunidade afetiva" terá este " ponto de vista" único sobre os acontecimentos, e teremos tantas histórias, com mais ou menos nuances e detalhes, quanto forem os narradores.

Novamente temos a questão – em meio a tantas versões onde encontraremos a "verdade" da narrativa? Contamos para nós e para os outros essa versão subjetiva e atualizada de nossa história, ou fatos a ela relativos – realidade ou ficção?

Na recolha de narrativas de pessoas comuns, buscamos resgatar os indivíduos com sujeitos históricos e produtores culturais, por meio da fala e da escrita, e enriquecer o repertório do grupo social e a cultura, e o relato é aceito com a verdade possível daquele indivíduo no momento atual – é o presente que atualiza o passado.

Esta questão apresenta uma outra relevância quando abordamos a questão dos testemunhos de fatos passados, envolvendo questões sociais e políticas, que podem levar a julgamentos e represálias. Neste ponto devemos considerar desde o silêncio consciente dos resistentes, daqueles que sofreram perseguições, ou foram presos e torturados, e os que sobreviveram aos extermínios. Que história é essa a ser contada? Quem quer falar? Quem prefere esquecer? Quem vai ser acusado ou vai acusar?

Se a história for contada qual versão assumirá?

Estas são algumas das muitas questões que envolvem o tema Memórias e Narrativas – realidades e ficções - seu valor como exemplos de histórias vivas, como "resistência", no mundo das relações fragilizadas pela sociedade de consumo e descarte, as manipulações possíveis; seus significados sociais e culturais, na construção e preservação das identidades, os julgamentos, e as questões éticas envolvidas, temas sobre os quais convidamos à reflexão.

Palavras-chave: memórias, narrativas, construções históricas.

 

A Paisagem Narrativa

"Uma explicação geral do mundo e da história deve levar em conta, antes de mais nada, a localização de nossa casa".

Este pequeno trecho de Calvino (2000:17) dá indícios e início às reflexões propostas neste artigo, pois ao abordar o tema Memórias, exercício recorrente em nossos estudos, vislumbramos sempre novas perspectivas, novos caminhos, novas paisagens de um passado/ presente - dinâmico, perturbador, incômodo, e irresistível.

Irresistível não porque façamos naturalmente rememorações fáceis ou prazerosas, de modo consciente e articulado - um "trabalho" desejado - mas porque, muitas vezes, mecanismos desconhecidos e inconscientes, se articulam, e trazem, ao presente, fato s de um passado de indesejável lembrança. Lutamos contra essas imagens que persistem e perturbam nossos pensamentos e nosso cotidiano, mas, muitas vezes, sua recorrência perturbadora se mantém.

Em outros casos, quando existe um trabalho determinado sobre a memória e se busca lembrar, muitos eventos, dos quais surgem pequenos resquícios gravados, não se apresentam, "brincam de esconde", não retornam com a clareza desejada - seria imaginação?

Permanecem como indícios – pequenos pontos de luz que brilham a distância como estrelas – sabemos que existem, mas não podemos alcançar. E, no caso das estrelas verdadeiras muitas, que ainda aparecem como luz, já estão extintas há muito tempo. Seria este o caso dessas memórias fugidias? Essas "impressões" de lembranças, como restos de outros fatos vividos por nós ou não - trechos de outras histórias contadas, lidas, assistidas em filmes - que se entrelaçam e parecem nos pertencer e, se retomadas , podem ser incorporadas como lembranças pessoais meio verdade, meio ficção, mas que por nós elaboradas e narradas tornam-se histórias vividas – verdades narrativas .

Armadilhas de um universo desconhecido, assim como o céu e as estrelas. E nelas se encontra o fundo do Tempo – anos luz para o universo; Cronos – tempo datado, Kairós – tempo vivido, para nós.

O termo paisagens no trato do passado nos parece estimulante, pois, de modo metafórico, podemos "olhar ao / de longe" tomar distância e localizar em meio a elas o fato, qual árvore alta e solitária, no horizonte longínquo.

No texto de Calvino a paisagem real e fictícia se divide - acima da casa da infância, situada em uma colina, se iniciava o caminho do pai rumo às suas terras em San Giovanni – um botânico apaixonado pela natureza – em direção à montanha "abrindo o caminho, aquele caminho secreto que somente ele conhecia e que atravessava todos os bosques, que unia todo o bosque num único bosque, todo bosque do mundo num bosque para além de todos os bosques, todo lugar do mundo num lugar para além de todos os lugares". (ibid: 21)

O caminho do filho "o mundo, mapa do planeta, ia de nossa casa para baixo [...] os sinais do futuro, eu esperava decifrá-los lá em baixo, através daquelas ruas, daquelas luzes noturnas que não eram somente as ruas e as luzes de nossa pequena cidade apartada, mas a cidade, uma fresta de todas as cidades possíveis, como seu porto já era os portos de todos os continentes [...]". (ibid, 18).

Paisagens e horizontes reais e imaginários que se entrelaçam, e tecem as tramas desta narrativa, exemplo de muitas outras que retomam, a partir do presente, o passado – lançando um olhar às paisagens que compõe o panorama, nos quais se movem os personagens que o habitam, trazendo movimentos, sons, odores, sensações que lhe conferem vida.

Essas paisagens do passado se materializam nas narrativas, porque só ao narrar a história se faz - damos "luz" à história no momento em que a narramos, ela nasce de nossa língua no espaço - tempo e lugar - de comunicação que se oferece.

"A memória só concede os seus dons quando sacudida por algo do presente. Não é um armazém de palavras ou imagens fixas, mas sim uma rede associativa dinâmica dentro do cérebro que nunca sossega e que é sujeita a revisão toda a vez que recuperamos uma cena antiga ou palavras antigas". (Hustvedt, 2010:103).

Mas, se a história trazida pelas memórias é uma construção narrativa, o que podemos considerar verdade, ou que seria ficção? O que é a memória? Por que é um assunto em evidência? Por que lembrar? Por que narrar?

No trecho acima da obra de Siri Hustvedt, Desilusões de um americano, o narrador é um psicanalista que após a morte do pai vai a busca de "verdades do passado", por meio de indícios encontrados no seu diário e numa carta por ele deixada. Na realidade este romance pode ser considerado como autoficção, ou seja, a autora não assume integralmente a obra como autobiográfica, e joga com personagens reais e imaginários para relatar uma história – meio verdade, meio ficção - assumindo a voz masculina do narrador.

O pai da autora, imigrante norueguês, que se tornou crítico e professor de literatura, ao morrer deixou para a família um volumoso caderno de memórias, base do romance. No lançamento do livro ela afirma em entrevista:

"Como ocupei o papel de guardiã das memórias de meu pai, que me autorizou a usar seus escritos antes de morrer, senti que teria de me colocar em outro lugar para ter um certo distanciamento [...] Os homens têm mais identificação com a figura paterna e o fato de eu ter escolhido um psicanalista como protagonista está muito mais ligado à possibilidade de ver as coisas de uma maneira racional do que a um simples capricho formal". 1
Assim, partindo de um personagem real – seu pai – e dos escritos diários, a autora cria um personagem masculino que lhe serve de porta-voz, e que se mostra verossímil, ao nosso ver, na leitura do romance. No entanto, muitos críticos viram neste artifício narrativo uma sobreposição de papéis, fragilizando a narrativa.

Estes exemplos são indícios de como os temas Memórias Autobiográficas e Narrativas, e as interligações com outras áreas do conhecimento, podem proporcionar uma compreensão alargada da realidade. Temos notado em livros, filmes, reportagens jornalísticas, na televisão, um crescente interesse sobre esses assuntos. As polêmicas que surgem a partir dessas narrativas, como no exemplo citado, mostram também como, muitas vezes, elas despertam ressonâncias "pessoais" nos leitores, outro aspecto interessante a ser abordado.

No momento em que ouvimos ou le mos um relato – verdadeiro ou ficcional – é freqüente um sentimento de identificação, a formação de um elo entre o leitor e narrador, vínculo que se estabelece se houver uma "entrega" do leitor à narrativa, deixando-a "nos interpelar na sua estranheza e não só nos tranqüilizar naquilo que nele projetamos, mas também produzir, graças ao confronto entre o universo do intérprete e o universo interpretado, uma transformação de ambos". (Gagnebin, 2006: p.168)

Nas identificações e estranhamentos frente às narrativas descobrimos novas possibilidades de compreensão de outros mundos, e a imaginação entra em cena nos colocando em tempos e lugares que não nos pertenciam, sentindo novas sensações, podendo levar a elaboração de outras narrativas possíveis de mim.

Um trecho do escritor Marcel Proust – um dos primeiros autores a se valer da autoficção - pode nos esclarecer sobre este misterioso jogo de sedução e identificação, da qual a literatura se (nos) alimenta:

"Mas, para voltar a mim, pensava mais modestamente em meu livro, e seria inexato dizer que me preocupavam os que o leriam, os meus leitores. Porque, na minha opinião, não seriam meus leitores, mas leitores de si mesmo, meu livro não passando de uma espécie de lentes de aumento como aquelas que oferecia a um freguês o dono da ótica de Combray; meu livro graças ao qual eu lhes forneceria o meio de lerem a si mesmo". (Idem, p.174).

Simultaneamente a essas questões amplas ligadas às memórias e narrativas, temos um crescente debate nos temas mais ligado ao envelhecimento da população mundial, com forte interesse e foco na perda das memórias e, em decorrência, das doenças desencadeadoras; da prevenção - por meio de treino ou otimização cognitiva, para mantê-la saudável; de novas descobertas nas áreas da neurobiologia, da farmacologia e nutrição, interesse s claramente ligados à crescente longevidade.

Mas, vemos abordadas, também, no tema memórias as questões relativas às perdas culturais ligadas ao patrimônio histórico – a memória das cidades – decorrente de um crescimento desordenado, fruto das novas correntes migratórias e imigratórias, deslocamentos impulsionados por questões sócio-políticas, em uma sociedade de consumo e alta tecnologia, mas com muitas perdas nos ganhos sociais e ambientais.

Qual a paisagem de memória, do lugar de pertencimento em uma grande metrópole? Como se constroem hoje as referências que balizarão o horizonte das novas gerações?

Verificamos muitas tentativas de preservação dos patrimônios humanos materiais e históricos – vilas, cidades, monumentos - e também do patrimônio imaterial considerando a cultura ampla – costumes, mitos, lendas, crenças - que se sustentam no imaginário dos diferentes grupos humanos. É neste contexto que se destacam, e adquire materialidade, as narrativas, modo de preservação tradicional na oralidade e escrita, da história dos indivíduos, espaços imaginário s nas paisagens do passado, no qual se articulam as memórias individuais, entrelaçadas com as coletivas - sócio-históricas.

Topografias das Identidades.

"A Memória é esse lugar de refúgio, meio história, meio ficção, universo marginal que permite a manifestação continuamente atualizada do passado".

Esta frase extraída do livro Uma Memória do Mundo - ficção, memória e história em Jorge Luis Borges (Pimentel Pinto, 1998), lança nova luz as nossas reflexões e abre caminho a outras questões: Seria a memória um refúgio, como tempo-espaço marginal onde articulamos e atualizamos, conscientes e inconscientemente, todas as sensações e experiências vividas? Lá manteríamos, como um refúgio, a cidade imaginária que povoa nossos sonhos de pertencimento e identidade?

Como falar sobre os espaços reais e os lugares secretos, refúgios de nossas memórias?

Os exercícios de falar, escutar e escrever são guiados por um desejo de comunicação, mas para concretizá-los, precisamos de uma língua comum, que se constitui no entrelaçamento dos fenômenos biológicos e culturais, perspectiva que nos leva à questão da identidade.

Nas sociedades tradicionais de "familiaridade mútua" a oralidade era a forma de transmissão da cultura do grupo, e pressupunha também uma identidade lingüística, uma língua comum.

A obra do famoso escritor Jorge Luis Borges, analisada por Pimentel Pinto, aborda a memória e sua inter-relação com o binômio identidade - língua. Borges, argentino de nascimento, viveu dos 14 aos 21 anos - importante período de formação - na Europa.

No retorno à sua transformada Buenos Aires natal, busca uma identificação nessa nova cidade, e de uma expressão nacional pela "poética da linguagem". Seria este seu lugar de refúgio?

Afirma Adriana Pérsico, ao abordar a formação da identidade argentina, que é necessário um território geográfico concreto para a sua constituição e que "se toda a identidade se define por fronteiras, pelos limites que assinalam os espaços outros, ou dos outros, a literatura tenta desenhar fronteiras geográficas e corporais, inscrever a topografia da individualidade numa topografia comunitária". (Pimentel Pinto, 1998: p. 56)

O espaço geográfico e a linguagem demarcam, pois, esta "topografia da identidade". Nos comunicamos – fala, escuta, escrita - a partir de uma unidade básica - a palavra, baseados nessa identidade que se funde em uma fronteira geográfica, por meio de uma linguagem humana que se forma na pa rtilha de sentimentos e pensamentos. Este humano organiza as palavras, transformam-nas em linguagem - signos de comunicação, transmissão e preservação de conhecimentos, sentimentos e experiências de um passado individual e coletivo. Memórias do vivido, reconstruídas no presente, de onde parte o chamado ao passado, que se presentifica na narrativa, atualizando o Tempo.

A linguagem é o veículo do pensamento, constituindo-se como poder institucionalizado e prática comunitária por excelência. Afirma Mikhail Bakthin (1895-1975), um dos grandes pensadores do século XX, que: "Nossa identidade forja-se no intercâmbio de linguagem com os outros, à medida que começamos a nos ver através dos olhos dos outros (...) o eu precisa do(s) outro(s) para ser autor de si mesmo e não existe fora do ambiente social". (apud Blumenschein, 2007: p. 61)

É por meio do encontro e diálogo que estabelecemos a ponte entre as subjetividades – eu e o outro – e construímos os sentidos que alicerçam nossas identidades e guiam nosso discurso narrativo. É no diálogo, e interação eu-outro, que se materializa e afirma o contexto semiótico-ideológico de uma determinada comunidade lingüística e cultural. É nele que se formam os sentido s das palavras - seus ecos, ressonâncias - no outro e em mim - no registro da escuta sensível.

A linguagem é um fenômeno biológico relacional que se concretiza no espaço do conversar - que depende de uma convivência e da interação entre os indivíduos – o diálogo como uma trama tecida entre conversar e emocionar - o "linguajear" - base da nossa humanidade - e nas redes de conversações que se estabelecem como um longo processo, construindo assim a cultura. (Maturana, 2004)

Nesta perspectiva nos aproximamos do conceito semiótico de cultura que afirma o homem como um ser amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, reforçando a premissa de cultura ampliada, na qual se expressam as muitas formas narrativas e suas análises.

(Geertz, 1989)

Estas reflexões nos levam a pensar na responsabilidade de cada um e dos grupos como co-participantes responsáveis na construção das culturas nas quais nos inserimos, a cada dia, nas conversas sem fim, entre todos os homens, Uma responsabilidade que ultrapassa o tempo de vida, pois somos parte deste longo diálogo humano que prossegue indefinidamente, legado que deixamos para um futuro de compreensão, respeito e ética.

Surgem neste ponto novas perguntas: Que vozes são ouvidas? Quem são os narradores? Do que falam? De que lugar e grupo social? Quem os escuta? Do que falam e com que finalidade?

Potencialmente todos somos narradores - comunicação intersubjetiva: de indivíduos de uma mesma comunidade lingüística – reforçando o caráter identitário desta conversa sem fim, influenciando e sendo influenciados pelos grupos aos quais pertencemos.

Cada cultura tem referenciais próprios de organização, transmissão e conservação de modos de vida - guiados por valores éticos, morais, mitológicos, históricos e sociais específicos – e nelas cada indivíduo se forma, segundo a percepção e a compreensão que deles tem.

Esta é a base de nossa identidade - categoria dinâmica e passível de recomposição – e nela construímos as narrativas, compostas por todas as experiências vivida neste tempo e espaço social que ocupamos. Lugar social de onde podemos narrar (ou não) nossas histórias, com suas verdades e ficções, metáforas, ambigüidades, não-ditos e silêncios, conferindo um sentido a essas trajetórias identitárias.

Os Refúgios dos Segredos.

"Minha irmã chamou aquela temporada de "ano dos segredos", mas agora, quando penso nisso, entendo que foi um tempo não do que existia, mas sim do que não existia. [...] Foi o que meu pai não tinha dito que tomou conta da minha vida por um tempo – aquilo que ele não havia contado para nós".(Hustvedt, 2010)

O espaço social do narrador, assim como seu objetivo, é fundamental à narrativa e a determina, de modo mais ou menos evidente. Quem sou e o que vou falar? Para quem e com finalidade? Vou contar minha trajetória e experiências aos familiares, informalmente? Tem um sentido mais profundo como um legado? Vou relatar um segredo de família? Vou falar a um público, é um registro histórico, um depoimento, debate, ou defesa sobre um trabalho realizado? Defendo idéias ou ideais? Reclamo por direitos, ou presto um depoimento judicial? Vou atacar, acusar ou me defender? Quem escuta? Serei compreendido? Como irão reverberar essas palavras, ainda não ditas, caladas, desconhecidas? Verdades, mentiras, ficções?

Um exemplo extraído da literatura e do cinema – parte das narrativas possíveis - pode tornar mais concreta esta reflexão.

Um recente artigo de jornal denominado Medeia na intimidade do Holocausto 2, abordava o lançamento de um filme francês – Le Secret – traduzido no Brasil por Um segredo de família, do diretor Claude Miller.

De família judaica - como o autor do romance Philippe Grimbert – Miller sentiu-se profundamente comovido, e afirma em entrevista que "a Shoah - o Holocausto - foi um fantasma da sua herança familiar, mas ele sempre experimentou um sentimento muito grande de desconforto em relação ao assunto".

"Todo mundo - enfim, as pessoas de boa consciência - nos ensina o horror que foi a perseguição dos judeus pelos nazistas, mas ninguém nos ajuda a quantificar o absurdo de tudo aquilo. Falamos em 6 milhões de vítimas, mas quem pode contabilizar isso? Eu, pelo menos, tinha a idéia de uma massa informe, e o que o livro de Philippe (Grimbert) me deu foi um rosto para essas pessoas. De repente, eu consegui ver aqueles judeus como integrantes da nossa pobre humanidade, gente como a gente. Teria ficado muito mal, comigo mesmo, se Philippe não tivesse me julgado digno de contar essa história".

No filme, assistimos o desenrolar da história de uma família de judeus, na França ocupada pelos nazistas. Um homem, que se recusa a carregar a estrela amarela costurada na roupa - identificação dos judeus neste período – e sua mulher que, ao descobrir a traição amorosa do marido, realiza um ato terrível – que remete ao título da matéria jornalística, e que deixa no ar a pergunta - O segredo de família é, ou pode ser, uma vingança?

Afirma, ainda, o diretor do filme Claude Miller:

"A Shoah, por si só, é uma tragédia, mas no livro de Philippe (Grimbert) ao horror se superpõe mais horror - Medeia, um arquétipo de mãe vingativa, capaz de sacrificar a própria prole ao seu desejo de vingança. E, depois, talvez não seja o sentimento mesquinho de vingança, mas outra coisa, um desejo triste de anulação, possível num mundo sem humanidade, em que a esperança termina por se esvair".

Verificamos, neste exemplo, a força e importância em nossos dias das memórias e as narrativas autobiográficas, mesmo que ficcionalizadas. Lembrar ou esquecer, falar ou calar sobre fatos marcantes e segredos de família?

Os estudos mostram que lembrar e esquecer fazem parte de um mesmo e complexo "sistema" neurobiológico, e os fatores que interferem nele tanto podem levar a manutenção e consolidação da memória, como aos esquecimentos. Então, porque lembramos? Porque esquecemos?

Somos o que lembramos – fatos prazerosos, realizações, os bons e maus momentos; mas, somos também o que esquecemos - as lembranças silenciadas, voluntárias ou involuntariamente, e os não-ditos – o que lembramos, mas que não podemos ou queremos falar – os segredos de família.

Como afirma o cineasta Miller, não somos responsáveis por aquilo que herdamos de nossos pais, não do ponto de vista material, mas no sentido genético e cultural, herança que pode ser pesada e nos cause uma certa revolta ao ter de carregá-la. Verificamos que a necessidade ou impulso narrativo pode, muitas vezes, ser um meio de elaboração destas histórias latentes, algumas não tão secretas, como verificamos na nossa prática, e no livro e no filme citados acima.

No filme de Miller, e no livro de Grimbert, passado em Paris, não temos cenas de batalhas, das lutas no front, nos aterrorizantes "campos" de extermínio. É uma batalha interna, no campo familiar - desencontros, perdas, dores, mortes - marcas que jamais se apagaram na memória de quem viveu, legadas a nós como história, agora com rosto e voz.

Estes relatos que vêem à luz são uma parcela mínima de muitas outras histórias silenciadas para sempre, mas que ficarão como latência e desconforto, muitas vezes inconscientes, nas famílias e seus descendentes.

Essas paisagens de um passado, vivido á distância por muitos dos latino-americanos, é um "presente", uma questão atual, apesar dos mais de 60 anos pós-conflito, em muitos países europeus como França, Itália e, especialmente, na Alemanha. Mas, não podemos esquecer, evidentemente, dos muitos sobreviventes que vieram para nosso continente em busca de segurança e estabilidade. Para estes às novas paisagens dos lugares de destino sobrepõem-se as paisagens dos lugares de origem, abandonados, mas vivos na memória.

Constatamos o crescente número de publicações cujo assunto é a 2ª Guerra Mundial, e suas conseqüências - análises de historiadores, sociólogos, jornalistas, pesquisadores, mas, de modo marcante, inúmeros relatos autobiográficos - muitos assim declarados, outros como romances de cunho ficcional, mas com pistas claras sobre a realidade do tema ou sujeito principal.

Notamos uma necessidade imperiosa de "passar a limpo" esse passado considerado vergonhoso, tanto para aos que carregam a "herança" de povo opressor, quanto para os que sofreram a opressão.

No livro Tempo Passado. Cultura da memória e guinada subjetiva (2007) de Beatriz Sarlo, professora argentina especializada em crítica literária, é realizada uma analise profunda dos muitos aspectos contraditórios e conflituosos dos resgates do passado, e o papel dos testemunhos orais. Afirma a autora que muitos narradores do período pós-guerra, especialmente citando Primo Levi - sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz e autor de livros considerados marcos de referência para essa discussão – falam porque para quem sobreviveu é impossível não falar, destacando o caráter moral do testemunho porque "o sujeito que fala não escolhe a si mesmo, mas foi escolhido [...] fala porque outros morreram, e em seu lugar (Ibid:34)

Afirma também que, a partir da década de 1980 reaparece o tema de "lembrar para não esquecer e não repetir" na cena européia, especialmente na Alemanha, tendo como pano de fundo a análise crítica dos historiadores sobre o Holocausto, e o (re) aparecimento dos muitos relatos dos sobreviventes dos campos de concentração nazistas. R elatos que se transformaram numa espécie de "modelo testemunhal" – como são únicos devem ser considerados e avaliados na perspectiva moral frente ao sofrimento e ao "inacreditável" ocorrido.

E indagamos: Como falar, nestes casos, de verdade ou ficção? Que palavras usar para descrever as paisagens do passado nas quais se mostram o "inenarrável, inacreditável"?

Analisando de modo crítico esta questão, muitos autores apontam para as "armadilhas" do culto ao um passado idealizado e dos testemunhos, que podem colaborar na manutenção do "círculo vicioso" de queixa, recriminação e acusação, que "congela" os papéis de culpado e acusador – a vítima e seu algoz.

A complexidade dessa abordagem se traduz em muitas questões: Qual a identidade do sobrevivente? È possível uma (re) elaboração, uma "composição" do passado a partir do "inenarrável"? Esse trabalho – a coragem do enfrentamento – poderia conduzir a um novo entendimento de si, levando a uma recomposição da experiência e o rompimento do círculo amargo do ressentimento?

Falamos de um passado que envolve uma grande guerra, e a morte de milhões de pessoas, mas não podemos desconsiderar os diversos e profundos sofrimentos cotidianos, que marcaram a vida de outros milhões. Romper o círculo do silêncio, culpa e ressentimento nem sempre é, ou foi, possível. Restam como legados.

Outro artigo A esquecida perseguição às mulheres durante a Segunda Guerra Mundial 3, sobre o mesmo período da 2ª Guerra, publicado na mesma semana que o já citado, reforça as considerações sobre esse passado presente, ainda não ultrapassadas.

O jornalista Jan Friedmann afirma no artigo que "A Gestapo de Hitler prendeu milhares de mulheres que admitiram ter tido casos com trabalhadores forçados estrangeiros na Alemanha, apesar de muitas confissões serem falsas e feitas sob pressão. Muitos homens foram executados e as mulheres, enviadas para campos de concentração pelo crime de "degradação racial", e as sobreviventes, na maioria, continuaram a sofrer as conseqüências psicológicas e sociais, depois do fim da guerra e até hoje..

È o caso de Maria K. – hoje com 82 – que teria tido um suposto romance com um prisioneiro polonês, e que, ainda hoje, se sente perseguida não só pelas lembranças, mas também pelo modo como ficou marcada em sua pequena cidade. Classificada em 1941, aos 14 anos, como uma "garota alemã desonrada" foi enviada para vários reformatórios e, finalmente, para o Campo de Proteção da Juventude Uckermark, uma filial do campo de concentração de Ravensbrück, onde ficou até 1944. Sua "confissão" mudou sua vida para sempre e causou a morte de dois rapazes. Ela ainda sente vergonha, mesmo sabendo que o oficial da Gestapo forjou a declaração e a espancou para assiná-la.

Esta história é uma, entre inúmeras outras, descobertas nas pesquisas realizadas por Gisela Schwarze, historiadora da cidade de Münster, no oeste da Alemanha. Ela descobriu um grupo de vítimas do regime nazista - mulheres e meninas alemãs acusadas de terem se relacionado sexualmente com trabalhadores forçados estrangeiros. Muitos casos foram reais, mas outros foram inventados, e a punição foi quase sempre a mesma, como no caso de Maria. As mulheres para os campos de concentração, os homens mortos.

Estas mulheres alemãs ficaram à margem da sociedade, nunca tiveram qualquer assistência, nem se recuperaram dos traumas sofridos. Ficaram como "segredos vergonhosos", esquecidos, em uma sociedade que hoje busca lembrar para poder superar e, quem sabe um dia, esquecer.

Coincidentemente, na mesma semana de janeiro de 2010, surgiram vários artigos de jornais, impressos e on line, cujos temas eram memórias e segredos. Muitos outros livros, filmes, e artigos focaram o assunto nestes meses, indicando sua pertinência, reforçando nosso interesse em um tema cada vez mais atual.

Assim, verificamos que a memória com sua "força avassaladora" impulsiona os segredos, que escapam, inexplicavelmente, de caixinhas fechadas á sete chaves. Um diário, uma foto, uma carta, quantas histórias.

Memórias e segredos. Sentimentos e sentidos. Mistérios a desvendar?

Horizontes do Esquecimento – Nunca Mais!

"Gostaria mesmo de visitar os lugares onde tanto sofri e ver como tudo mudou. Sempre digo aos jovens "eu conto o que aconteceu, porque não podemos permitir que meu passado seja seu futuro". (Laks, 2001)

Na sociedade global de comunicação em tempo real, com um panorama de homogeneização e fragmentação, as identidades "embaçadas" e as desigualdades marcam territórios, não só geográficos, mas também nas palavras ditas ou silenciadas. É neste cenário que os fatos do passado, marcados por morte, dor e ressentimento reaparecem com um presente imperativo.

Muitos são os aspectos a serem considerados quando analisamos narrativas comuns, e mais ainda quando estas são testemunhos que desvelam fatos vergonhosos e acusam. Além das "verdades possíveis" ali contidas, devemos estar atentos ao seu uso ideológico, pois as narrativas ou testemunhos podem ser manipulados a serviço de interesses outros que não o esclarecimento dos fatos, alimentando ódios e ressentimentos com fins políticos.

Mas, não podemos perder de vista as muitas possibilidades e a importância das narrativas enquanto constitutivas de sentidos para os sujeitos, que têm acesso a um espaço de diálogo, perspectiva que valoriza projetos que possibilitem a expressão de diferentes segmentos da sociedade, abrindo espaços de diálogo e escuta sensível, sem desconsiderar a força dos silêncios, não-ditos, interditos. Vozes "ocultas", latentes, que se mantém na persistência das memórias, durante regimes políticos e períodos de exceção, sem esquecer os segredos de família, registros que quando revelados, podem iluminar os fatos passados, quer sejam políticos, sociais e familiares.

Os fatos narrados atualizam a história, porque nascem no presente narrativo, re-elaboração e reconstrução mediada pelos vários mecanismos, conscientes e inconscientes, que atuam na formação, consolidação e recuperação das lembranças, seja do ponto de vista neurobiológico, como nas diferentes influências do meio sócio-histórico, e do lugar que nele ocupa o "sujeito de memória", o narrador. Ele se apropria da palavra, mas o que falar ou calar?

Michel Pollak (1998,1992), estudioso dos temas, aborda a relevância das memórias subterrâneas - dos excluídos, marginalizados e minorias – no enfrentamento das "verdades" da memória nacional. As memórias silenciadas afloram, especialmente, em momentos de crises, conflitos e disputas, sejam internas ou entre grupos e países - memórias subterrâneas, indizíveis, vergonhosas, caladas por medo, por vergonha e culpa, porque não os indivíduos não queriam transmitir os sentimentos negativos para a "nova vida", ou para sobreviver.

Com o passar do tempo, e as mudanças sócio-políticas, gradualmente o interesse sobre o passado calado ressurgiu, abrindo espaço para esses relatos. Desejo de falar – passar a vida "a limpo"; desejo de escutar – compreender os fatos; e para todos - desejo de superar e fortalecer o sentido do termo "nunca mais".

Mas, neste momento também surgem as "testemunhas autorizadas" ou "profissionais da memória", nos quais Pollack localiza a tentativa de um "enquadramento" das narrativas pessoais no interesse da construção de uma memória e identidade coletiva idealizada, a serviço da memória nacional, e passível de manipulação.

O enfrentamento destas "armadilhas" pode ser realizado a partir dos trabalhos de resgate oral ou escrito das memórias individuais, sem conexão com associações ou outros movimentos organizados de acervos de testemunhos. Assim, podemos vislumbrar, por meio da narrativa, "ao trabalho psicológico do indivíduo que tende a controlar as feridas, as tensões e contradições entre a imagem oficial do passado e suas lembranças pessoais". (Pollack:1989: p.12)

Na análise crítica dos aspectos contraditórios e conflituosos dos resgates do passado, e sobre o papel dos testemunhos orais e escritas narrativas, realizada em profundidade por Beatriz Sarlo, surge, como exemplo, o papel dos testemunhos na condenação dos militares argentinos envolvidos na violenta repressão ocorrida no período da ditadura, na década de 1970 – o terrorismo de Estado - analise fundamental na compreensão da importância e, simultaneamente, das ambigüidades desse s "discursos testemunhais ", sobre os quais declara "a memória foi o dever da Argentina posterior à ditadura militar e o é na maioria dos países da América Latina".

Estes testemunhos originaram um movimento social que concretizou a Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas no Chile entre 1983-4, resultando na publicação do livro - Nunca Más, com repercussões no Brasil, onde também se iniciava a retomada da democracia, gerando a fundação do grupo Tortura Nunca Mais, em 1985.

"Nunca mais" como afirma Sarlo, é a base sobre a qual devemos construir um saber sobre fatos que desejamos nunca mais ver repetidos.

Este "Nunca mais" é também o mote no tema do Holocausto, tendo como base testemunhos muitas vezes únicos , de fatos "indizíveis e inenarráveis". A frase "lembrar para não esquecer e não repetir" reaparece a partir da década de 1980, em toda a Europa, mas especialmente na Alemanha, com o surgimento das análises críticas dos historiadores, e o reaparecimento de muitos relatos silenciados dos sobreviventes dos campos de concentração nazistas.

Esses relatos transformaram-se numa espécie de "modelo testemunhal" – como são únicos devem ser considerados e avaliados na perspectiva moral frente ao sofrimento e ao "inacreditável" ocorrido. Como falar, nestes casos, de verdade ou ficção? Que palavras podem narrar o "inenarrável, inacreditável?" E a indagação-indignação de Levi, e título de uma de suas obras - É isto um homem? Como ressoa em nós até hoje?

Baseada em Adorno, importante filósofo do século XX, a filósofa Jeanne Marie Gagnebin (2006) afirma que a palavra-chave não seria memória ou lembrança, (ou testemunho), mas esclarecimento, no sentido da "compreensão clara e racional". Esse passado traumático se faz presente, e não aceita a memória como culto a um passado idealizado, ou na manutenção do "círculo vicioso" de queixa, recriminação e acusação, mantendo os papéis de culpado e acusador – a vítima e seu algoz.

Nas revisitas às paisagens do passado podemos vislumbrar o movimento do tempo, nos diferentes espaços habitados por pessoas comuns que viveram, amaram, sofreram, foram perseguidas, e muito perderam: membros de suas famílias, ou toda ela, seu território de origem, sua língua, e a forma de expressão que marca a cultura de origem. Os que ressurgem como testemunhos trazem nas narrativas os aspectos psicológicos e psicanalíticos latentes nesses resgates, de ressignificações e recomposições do passado, as inter-relações com a constituição dos sentimentos de identidade e ou sua perda.

A autora enfatiza a relevância dos trabalhos de elaboração do passado – a coragem do enfrentamento – que pode permitir o entendimento de si para "sair do registro da queixa e da acusação".(Ibid, p.104).

Complementando as considerações sobre o "lugar" das memórias e identidades, que se mostram nos tópicos aqui enfocados, nos apoiamos em Pollak (1992) que baseado na psicologia social estabelece três elementos constitutivos da identidade - os sentimentos da fronteira do corpo, no caso individual, e da fronteira de pertencimento ao grupo, no caso coletivo; o da continuidade no tempo, no sentido físico, moral e psicológico; e o sentimento de coerência de todos os elementos constitutivos do indivíduo. Para ele as memórias, tanto individuais como coletivas, são fundamentos da identidade, pois reforçam esse "sentimento de continuidade e coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si". (Ibid, p.5)

Mas devemos considerar que "o fluxo constitutivo da memória é atravessado pelo refluxo do esquecimento [que] não seria só uma falha, um "branco" de memória", mas um processo "que apaga, renuncia, recorta, opõe ao infinito da memória a finitude necessária da morte e a inscreve no âmago da narração" (Gagnebin, 1999: p.3)

Caminho de Volta

"Uma explicação geral do mundo e da história deve levar em conta, antes de mais nada, a localização de nossa casa".

Voltamos à frase que iniciou esta reflexão – a casa como ponto de referência das memórias e identidades, do nosso lugar no mundo, um refúgio. A casa como metáfora de um lugar para o qual sempre voltamos, mesmo que ela não exista mais - da porta para fora ou da porta para dentro, para cima ou para baixo – nosso lugar, no qual tudo faz sentido - refúgio de conforto, de espaço de negociação, conosco mesmos e nosso passado; refúgio dos não-ditos, interditos, dos silêncios; refúgio das memórias para os sobreviventes de todos os sofrimentos, das perdas, da solidão. Refúgio e conforto no espaço onde habitam nossas histórias, meio verdade, meio ficção com dores e alegrias, nas qua is podemos criar um personagem - uma nova história com um novo herói - reconstruído a partir de identidade atual - um universo marginal , atemporal.

Lá podemos atualizar, continuamente, o passado e "compor" a melhor versão de nós mesmos, no tempo presente, e por meio das narrativas recompor "magicamente" o passado, que incorpora também o sonho, a fantasia, o devaneio – o imaginário da cultura.

Na paisagem do passado vemos nosso lugar de refúgio, lá está, e para ele podemos retornar sempre,

"Mas o que movia meu pai a cada manhã pelo caminho de San Giovanni acima – e a mim abaixo, para meu caminho – mais que o dever de proprietário laborioso, ou o desprendimento de inovador de métodos agrícolas – e o que o movia a mim, mais do que as definições daqueles deveres que aos poucos iria me impor – era paixão feroz, dor de existir – o que mais podia nos impelir, ele a subir pragais e bosques, eu a me entranhar num labirinto de muros e papéis escritos? – confronto desesperado com o que resta de nós fora de nós, desperdício de si em oposição ao desperdício geral do mundo".(Calvino: 2000, p.26)

Notas

1 Jornal O Estado de São Paulo, 23 de janeiro de 2010.

2 Jornal O Estado de São Paulo de 23 de janeiro de 2010.

3 Revista Der Spiegel (on line) de 25 de janeiro de 2010.

 

Referências Bibliográficas

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GEERTZ, Clifford. (1989). A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Zahar.

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Artigos

Segredos de uma família americana assustada. Antonio Gonçalves Filho
Capturado em 23 /01/ 2010.
http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20100123/not_imp500191,0.php

Medeia na intimidade do Holocausto. Luiz Carlos Merten.
Capturado em 23/ 01/ 2010.
http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20100123/not_imp500194,0.php

A esquecida perseguição às mulheres durante a Segunda Guerra Mundial.
Jan Friedmann, tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
Der Spiegel on line, capturado em 25/ 01/ 2010.
http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/derspiegel/2010/01/25/ult2682u1472.jhtm

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