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Consciência e Felicidade
Eduardo Diatahy B. de Menezes
Professor Titular de Sociologia da UFC e da UECE (Ceará - Brasil)
Membro do Instituto do Ceará e da Academia Cearense de Letras (Ceará - Brasil)


Reconheço desde logo quão pretensioso é ousar discutir no espaço deste artigo o problema contido em cada termo do título, e mais ainda explorar a sua relação. É sobre isso todavia que desejo aflorar algo aqui e, para tanto, recorro inicialmente a um guia que me parece seguro: Freud, esse poderoso pensador da cultura e da humana condição.

Não sou suficientemente versado em sua vasta obra para firmar juízo consistente sobre o que de melhor propôs a esse respeito. No meu entendimento, suas obras da maturidade elaboram boa reflexão sobre o tema. Penso aqui, em particular, no seu O Mal-Estar na Civilização (1930), livro denso e meio pessimista, que termina por uma indagação angustiante e começa com esta afirmação crítica: "É impossível fugir à impressão de que as pessoas comumente empregam falsos padrões de avaliação - buscam poder, sucesso e riqueza para si mesmas e os admiram nos outros, subestimando tudo quanto verdadeiramente tem valor na vida." Mas ele não se arrisca a dizer que valor é esse. Aprofunda porém, neste ensaio, sua investigação sobre o significado da vida e as dificuldades que derivam da civilização, reflexão analítica que já vinha de sua obra anterior, O Futuro de uma Ilusão (1927), onde exercita esse procedimento visando particularmente à religião.

Ora, diz ele, a vida, tal como a encontramos, é por demais árdua para nós, proporcionando muito sofrimento, decepções e tarefas impossíveis. Daí que não possamos passar sem "medidas paliativas", de que cita três tipos: derivativos poderosos, que nos fazem extrair luz de nossa desventura; satisfações substitutivas, que a diminuem; e substâncias tóxicas, que nos tornam insensíveis a ela. Nos derivativos, ele encara sobretudo o trabalho e a atividade científica. Já as satisfações substitutivas, como as oferecidas pela arte, ele as considera ilusões, em contraste com a realidade; nem por isso menos eficazes do ponto de vista psíquico, em virtude do papel central assumido pela fantasia na vida mental. Enfim, as drogas influenciam nosso corpo e alteram a sua química. Ao que Freud acrescenta esta observação: não é fácil perceber onde a religião acha seu lugar nessa série.

A indagação acerca do propósito da vida humana já foi formulada muita vez, nunca recebeu porém resposta satisfatória e, diz ele, talvez não a admita. Muitos supõem que se fosse demonstrado que a vida não tem propósito, esta perderia todo valor. Este questionamento parece tipicamente humano, visto que ninguém fala do propósito da vida dos animais; talvez por se supor presunçosamente que estes estão a serviço do homem. E asseverando que só a religião é capaz de resolver essa questão, ajunta: "Dificilmente incorreremos em erro ao concluirmos que a idéia de a vida possuir um propósito se forma e desmorona com o sistema religioso."

Enfrenta então o problema menos ambicioso de saber qual é intenção que os homens, por seu comportamento, atribuem às suas existências: que pedem eles da vida e que desejam nela realizar? E responde: "Esforçam-se para obter felicidade; querem ser felizes e assim permanecer." Essa empresa apresenta uma meta positiva e outra negativa – por um lado, busca a ausência de sofrimento e de desprazer; por outro, visa à experiência de intensos sentimentos de prazer. Em sentido restrito, ‘felicidade’ só diz respeito a estes últimos. Vê-se que o propósito da vida é dado pelo princípio do prazer, que domina o funcionamento do aparelho psíquico desde o início; não há dúvida sobre sua eficácia, ainda que seu programa esteja em desacordo com o universo inteiro: todas as suas normas lhe são contrárias. Freud insiste que somos feitos de modo a só obtermos prazer intenso de um contraste, e muito pouco de um estado de coisas. Embora dizendo que pode ser exagero, cita Gœthe a esse respeito: "nada é mais difícil de suportar que uma sucessão de dias belos."

Nossa felicidade é pois sempre limitada por nossa constituição, e a infelicidade é experiência mais freqüente. Ou seja, o sofrimento nos provém, segundo ele, de três fontes: de nosso corpo, condenado à decadência e à dissolução, sem mesmo poder dispensar a dor e a ansiedade como sinais de advertência; da superioridade da natureza, que pode voltar-se contra nós de forma destruidora e impiedosa; e da inadequação das regras que buscam ajustar as relações mútuas dos seres humanos na família, no Estado e na sociedade. A partir dessas premissas, Freud desenvolve longa reflexão para analisar as táticas de vida desenvolvidas pelos homens no seu desiderato de reduzir o sofrimento e buscar a felicidade, especialmente seu belo exame da relação entre amor e civilização, sexualidade, agressividade, confronto com a cultura, existência do mal, pulsão de morte e destrutividade (Tánatos), retomando sua hipótese do parricídio primordial como origem da culpa e do remorso, etc. Desse panorama agonístico, conclui o ensaio afirmando, para em seguida formular sua dúvida final acerca do bom êxito dessa dialética:

«Agora só nos resta esperar que o outro dos dois ‘Poderes Celestes’, o eterno Eros, desdobre suas forças para afirmar-se na luta com seu não menos imortal adversário. Mas quem pode prever com que sucesso e com que resultado?»

Freud, esse grande ficcionista cartesiano ( que passe o oxímoro), não relaciona porém, claramente, ‘consciência’ e ‘felicidade’, mas isso está implícito em todo o seu pensamento e a psicanálise opera no sentido da tomada de consciência como via de superação das perturbações da conduta. Pode ser enganador encarar a psicanálise como modelo para interpretar a relação entre consciência (conhecimento) e liberdade. Com efeito, a auto-consciência ou o auto-entendimento racional não é a mesma coisa que autonomia. Um escravo, por exemplo, pode apreender lucidamente as circunstâncias de sua subordinação e, não obstante, permanecer escravo. Entretanto, é fundamental reconhecer que a compreensão das condições que influenciam a conduta humana é incorporada na ação e pode produzir sua própria transformação.

Como quer que seja, antes e depois de Freud, há ampla tradição reflexiva opondo esses termos e relacionando felicidade antes com inocência e ignorância. Georges Brassens, artista de poética anarquista, dizia numa canção: "Não há como os imbecis que sabem fazer bem o amor." Ou Balzac (1799-1850), que afirmava em seu Eugênia Grandet: "Terrível condição do homem! não existe uma de suas felicidades que não provenha de uma ignorância qualquer." E Dostoievski (1821-1881), já não recordo em qual obra, talvez Memórias do Subsolo, asseverava que o homem ocidental viveria mais feliz com a metade da lucidez que conquistou. Melhor ainda que os demais, Ibsen (1828-1883) enfrenta o problema ético dessa relação em O Pato Selvagem e Espectros: até onde é importante para a vida do homem que ele tenha clara consciência dos fatos que lhe concernem? Em Espectros apresenta um indivíduo cuja vida arruina-se pela ignorância de sua real filiação ou herança. Já na outra peça examina a situação contrária de um homem cuja vida feliz funda-se na incompreensão que tem da atitude dos demais para consigo. A questão não reside, pois, em saber se a tomada de consciência é ou não importante, mas se é mais importante do que ser feliz.

Fortaleza, 27 de Fevereiro de 1998.

 


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