Psicanalise e Psicofármacos

Duas pontuações acerca do sujeito do inconsciente

Sara Elena Hassan

A proposta é de fazer uma leitura a partir da psicanálise , no atual DSM (Diagnostic and Statistic Manual) -IV versão – correlacionada com uma classe de psicofármacos e principalmente das suas conseqüências para o sujeito do inconsciente.

Os autores do DSM, norteados por uma intenção descritiva e a-teórica confes sa, à procura de melhoras na comunicação entre especialistas do mundo todo, parecem desconhecer ( e isto não é uma novidade) que aquele Manual veicula uma orientação não isenta de direção teórica e clínica, em especial a partir dos anos 80, com o DSM III, contemporâneo à descoberta e promoção da fluoxetina.

A partir da entrada em cena deste fármaco (n ?) inibidor da re-captação da serotonina nas sinapses, vai começar uma outra correlação dos sintomas ( aqui em sentido médico) com as substâncias ( psicofármacos antidepressivos). Em primeiro lugar alavanca-se a idéia de uma linearidade causal de ordem químico-biológica para as doenças ( daqui para frente "síndromes") onde a falta ou diminuição do neurotransmissor serotonina é posto no lugar da causa do transtorno, de pânico no caso. O movimento aí, é de inversão em relação aos Manuais anteriores porque é a partir da reversão terapêutica atribuída a este agente, ou efeito do fármaco, que a síndrome ( de pânico) é cunhada e passa como tal para o Manual, "inscreve" nele uma operação. Assim, resulta que cunhar uma síndrome não é apenas pôr em causa uma substância mas mudar, remanejar algo em termos de discurso, entendido, segundo Lacan, como "um certo número de relações estáveis", onde é ordenado o que é falado, que não é restrito às palavras mas que "governa tudo o que eventualmente pode surgir de palavras" envolvendo um moldado da realidade, "sem supor nenhum consenso do sujeito", que fica então cindido entre o que enuncia e "o fato de se colocar como aquele que o enuncia". (Lacan, Seminário XVII )Discurso, então, é o que faz laço social, ou em outras palavras, os modos do ser falante lidar com o gozo - o real que escapa- Enquanto os outros discursos vão tentar esquivar esse gozo, ou tamponá-lo, o discurso psicanalítico vai ao encontro do mesmo ( a singularidade) para com ele trabalhar.

Lacan formaliza "discurso" como uma espécie de aparelho de 4 patas:

Quatro lugares separados por duas barras (______)acima esquerda o lugar do Agente; flecha - indicando sentido; acima direita o lugar do Outro a quem o Agente se dirige; embaixo esquerda o lugar de Verdade; duas barras de separação indicando relação de impossibilidade entre termos; a embaixo direita ou lugar da Produção.

Os lugares são ocupados por termos, ou letras: S1, S2, S barrado, a. Habitualmente se lêem como

S1=Significante mestre; S2=Saber ; S/ =Sujeito barrado; a= objeto.

Cada um dos termos ou letras vai rodando pelos lugares e toma um valor diferente, dependendo do lugar que ocupa.

Agente - ---> Outro
Verdade | | Produção

São 4 discursos, sendo que cada um surge de ¼ de giro dos termos, ou seja que eles são vinculados por uma lógica. Mais um quinto discurso, que resulta da "corrupção", do discurso do mestre por inversão dos termos a esquerda, nos lugares.

Mudança de discurso quer dizer que vão serem alteradas as relações entre os elementos e os lugares.

O que faz toda a diferença!. Isto é, o termo no lugar, em relação aos outros. Ou seja: é das relações dos termos e lugares entre si que vão resultar mudanças significativas. Fazer leituras do "aparelho" é retirar dele articulações de sentido possíveis.

Assim, quando uma substância como tal é nomeada e passa para o Manual, ela se torna referencial universal, mas também é possível lê-la como um significante em relação a outros significantes ( números, outras síndromes, e etc). Só que neste caso a relação com outros significantes não resulta – ao menos "espontaneamente" – em efeito de sujeito mais em esquecimento do mesmo.!

É nesta correspondência entre os significantes do Manual e a substâncias, enquanto significantes, que o sujeito vai ser tomado, o que, assim posto, pode resultar um tanto estranho desde que ao saber universitário não interessa o sujeito do inconsciente. Ver acima, no discurso universitário, o lugar do S/ , embaixo a direita, configura o sujeito submerso sob a barra como produto. No mesmo discurso podemos também pôr "serotonina", ou "fluoxetina" no lugar de S1 ( significante mestre no lugar da verdade) exercendo seu efeito sobre o S2, isto é determinando o saber no lugar da dominante ( acima a esquerda). É desde a dominância de este saber que o discurso se dirige aos outros ( interlocutores, público, estudantes) como objetos (a) isto é, sem decisão, resultando com produto um sujeito apagado, imobilizado.

I.Foraclusão do sujeito

Mais radicalmente, Lacan propõe, em A ciência e a verdade"( 1965-66), que "a prodigiosa fecundidade de nossa ciência deve ser interrogada no seguinte aspecto, no qual a ciência se sustentaria: que da verdade como causa, ela não quer-saber-nada"1. E a seguir: "reconhece-se ai a formulação que dou da Verwerfung ou foraclusão –que viria juntar-se aqui, numa série fechada, a Verdrängung, recalque, e a Verneinung, denegação cuja função vocês reconheceram de passagem na magia e na religião".

É isto o aludido acima, de modo geral, como "esquecimento", na medida em que o que está em jogo é a exclusão do sujeito em um sentido radical. Não por maldade de ninguém mas pela lógica da pressão da ciência sobre o discurso do mestre.

"  J.A. Miller encontra no DSM precisamente, uma evidência desta foraclusão:  Trata-se da relação entre um conjunto sintomático representado pela numeração e uma substância, ou seja o psicofármaco".2
As síndromes, concebidas em relação a uma terapêutica neuroquímica, desconhecem "o sujeito enquanto produto das contingências de sua história, como causado por um desejo, com um gozo singular que lhe é próprio e ao qual "não é possível obrigar a renunciar"3

II.Inversão dos termos no discurso do capitalista

A inversão dos lugares a esquerda, e da flechas no discurso do mestre, é uma espécie de corrupção lógica do mesmo, por pressão do saber científico sobre aquele.

Comparar

com o discurso do mestre.

O fármaco, em quanto S1 no lugar da verdade, configura a "pura verdade", a cargo de um sujeito agente, S/, que não é mais barrado, dividido pela linguagem, mais agente narcíssico cujo empuxo tende a obturar toda e qualquer falha.

Isto equivale a uma mutação, em sentido forte, dos outros quatro discursos.

Esse discurso, gira programado na órbita das corporações, desenfreado, sem obstáculos entre o produto e o lugar da verdade ( como acontece nos outros discursos). A verdade como lugar separado, disjunto do produto, desaparece.

A inversão no discurso do capitalista nos e voca a inversão da lógica do Manual quando síndromes são estabelecidas por "responder"a uma terapêutica, a um antidepressivo no caso, capaz de suprir os neurotransmissores faltantes. Levando a risca esta idéia, há uma rejeição da função de determinação da verdade e a suposição "de sua regulação e controle por parte do agente", cujo caso ocupa o sujeito4

O efeito de sujeito é substituído por efeitos de molécula sobre molécula. As articulações do sujeito são perdidas, e não distantes da liquidez baumaniana da subjetividade sem referências, com hiper-valorização da individualidade.

Nestas circunstâncias, o DSM vem reforçar, ou ainda sancionar esta liquidação, pela qual o sujeito é liquidado, ou no melhor dos casos dês-baratado, despido do seu barato, isto é do seu gozo, singular e próprio, portanto das part icularidades da sua história, e causado pelo desejo.5

Fevereiro 2009

Notas

1 L.acan, Jacques: Escritos, pág 889, Jorge Zahar Editor, Brasil.

2 Yellati, Nestor : El sujeto del psicofármaco, Psiquiatria y psicoanálisis, pág. 219, Grama ediciones..
Argentina.

3 Ibid Pág. 219.No decorrer do seminário XII de Lacan ( 24/2/65), sobre problemas cruciais da psicanálise, J.A. Miller apresenta um trabalho sobre a questão do sucessor em Fregue (basedo na axiomática de Peano sobre a série dos números naturais), mais conhecido como "A sutura". Miller coloca que na sucessão dos números naturais, para passar de um número ao número seguinte, o que está omitido na lógica é a operação do sujeito. Isto é, daquele que conta 1, 2, 3, etc. É por essa mesma razão que ele chama "sutura" ao procedimento envolvido: o fechamento do sujeito em relação à cadeia significante. Esta omissão faz com que não apareça, no sentido em que a psicanálise o entende, isto é uma clausura a todo e qualquer um aparecimento do sujeito como efeito do significante. Sujeito efeito no real, da articulação significante, S1  S2, onde o S2 exerce o seu efeito retroativamente sobre o S1.

4 Karothy Rolando H., em "Los tonos de la verdad", De la Campana, Libreria Editorial, 1996, Buenos Aires.

5 O DSM V, está no prelo, à ser lançado em 2010, como edição de prova para consulta de opinião, com numerosas novas síndromes, diversamente cunhadas, próprias da contemporaneidade.


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