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Psicanálise na Universidades

Texto redigido por ocasião do lançamento do primeiro livro do Mestrado em Psicanálise da UERJ: Clínica e Pesquisa em Psicanálise. Organizado por: Sonia Alberti e Luciano Elia. Rio de Janeiro, Editora Rios Ambiciosos, 2000.

por Sonia Alberti1

Há duzentos anos, ou seja, no início do século XIX, muitas coisas finalmente teriam chances de mudarem para a intelectualidade no Brasil em conseqüência da criação, por D.João VI, da primeira Universidade do Brasil que logo viria a abrigar o primeiro curso de medicina. Inaugurava-se, assim, a possibilidade do desenvolvimento de "um monte de idéias novas", como foram chamadas, que levariam um século para se imporem, definitivamente, e se superporem, finalmente, ao domínio intelectual das instituições religiosas. Na luta entre ambas as formas de pensar - a dos universitários e a dos religiosos -, nem sempre o que vinha da universidade era mais revolucinário do que o produzido nos Seminários; a questão é bem mais complexa e proíbe qualquer abordagem maniqueista. Isso porque as próprias instituições religiosas sofreram modificações radicais em decorrência das imposições e mudanças conforme a época pré ou pós pombalina.

De qualquer maneira, é importante notar que, a partir de um certo momento de nossa história, momento esse perfeitamente datável, a Universidade passou a ter um papel cada vez mais preponderante na articulação dos saberes de forma a adquirir, cada vez maior status ao lado daquele, desde sempre atribuído às sociedades (grupos, corporações etc.), clandestinas na época colonial por causa da interdição portuguesa de qualquer exercício político.

Hoje, duzentos anos depois, quando tantos olhos se voltam para o futuro, é importante não deixarmos de retomar nossa história e verificar o que nos determina - lição, aliás, que aprendemos com dois gênios, filhos justamente do século XIX, Marx e Freud. O termo gênio, aqui, tem a intensão de ressaltar a universalidade de suas descobertas, completamente atemporais (Freud não "já era", expressão que, no caso, somente reconfirma a resistência para com a Psicanálise). O desejo é sempre historica e culturalmente determinado, Jacques Lacan dirá que ele é produto da própria relação do sujeito com a linguagem como campo Outro a preexisti-lo, e fechar os olhos para a história da cultura é, pois, renegar o desejo - o que se faz hoje com enorme facilidade frente aos gadgets propostos pelo discurso do capitalismo. Então: se nos exercemos como sujeitos desejantes, o que produzimos é passível de uma análise historicamente articulada.

É nesse contexto que articulo três produtos atuais que mobilizam maior ou menor número de psicanalistas. 1. O lançamento de um livro: Clínica e Pesquisa em Psicanálise, dia 19 de março, primeiro produto do Mestrado em Psicanálise do Instituto de Psicologia da UERJ, com os primeiros trabalhos de pesquisa, resultado da interlocução entre seus corpos docente e discente; 2. Os eventos preparatórios na UERJ para o Colóquio Internacional no Hotel Glória/RJ: "2001: a Odisséia Lacaniana", que se realizará nos próximos dias 11 a 14 de abril, e 3. A mobilização geral contra a tentativa de regulamentação da atuação do Psicanalista como uma profissão.

Por mais que isso possa soar estranho para muitos, a relação da psicanálise com a universidade é praticamente original: em 1900 Freud publica a Interpretação dos sonhos, obra princeps da psicanálise; dois anos depois é nomeado, pelo Imperador Francisco José, Professor extraordinarius, na Universidade. No entanto, devido à importância que foi adquirindo a história do movimento psicanalítico - com suas associações e sociedades -, cada vez mais também em nível internacional, pouco se escreveu sobre a relação da psicanálise com a universidade. É possível que tal hiato da historiografia não seja anódino, afinal, sustentar a pesquisa na universidade requer uma potencialidade para suportar a intersecção discursiva que, nem sempre, o psicanalista muito bem sucedido em sua clínica tinha interesse em sustentar - ou, justamente, o nem tão bem sucedido assim... É possível que às vezes se preferisse seguir a máxima do Senado Romano, dividir para reinar, de um lado minha instituição psicanalítica, do outro, a universidade. Essa divisão de campos chegou a ser tão grande que houve época - e isso não faz tanto tempo assim - em que não se via com bons olhos um professor universitário que se dissesse também psicanalista; como se ambas as coisas não pudessem coexistir, na tentativa de uma regulamentação que impusesse um único local de formação. Em nome de sectarismos a psicanálise sofreu muitos retrocessos, nos últimos cem anos. A psicanálise, ela mesma, só ganhou com isso a prova de que ela própria reinava para além de todas as segregações, tendo sobrevivido a todas.

Ano passado, em Paris, em sua fala de abertura dos Estados Gerais da Psicanálise, Elisabeth Roudinesco, uma das mais importantes historiadoras da psicanálise da atualidade, supreendeu com a observação: é no Brasil que hoje melhor se verifica o desenvolvimento da psicanálise na Universidade, em particular, nos Institutos de Psicologia. Para ter alçado tal reconhecimento internacional, certamente a determinação histórica do lugar da universidade no Brasil deve ter contribuído de alguma maneira, mas contribuíram também a formação e o investimento dos psicanalistas brasileiros que estão hoje nas universidades. Em primeiro lugar, sua formação psicanalítica que Freud identificava com a análise pessoal de cada um e que permite a transmissão do que propriamente é a causa freudiana; em segundo lugar, sua articulação com a política da psicanálise, conceito bastante complexo que visa a observação da singularidade de cada sujeito, exercício que necessita do intercâmbio com pares que se encontram, na maioria das vezes, nas sociedades, associações e escolas de psicanálise, já que a política da psicanálise se faz na tensão entre a solidão do ato psicanalítico e sua transmissão para a verificação de sua eficácia, e, finalmente, em terceiro lugar, o interesse acadêmico sustentado por uma política dos órgãos de fomento à pesquisa (Capes, CNPq e Fundações estaduais) que permitiu o investimento bastante democrático, nos últimos vinte anos, em mestrados e doutorados tanto no Brasil quanto no exterior. Além disso, a chegada de muitos analistas de renome, vindos da Argentina, onde a psicanálise já conquistara definitivamente um importante lugar na universidade, em decorrência das perseguições políticas, e a chegada dos primeiros analistas que puderam trabalhar com Jacques Lacan em Paris, passou-se a justificar a existência do psicanalista na universidade. Com efeito, foi durante os movimentos de 1968 que Lacan criou, com a ajuda de alguns amigos - entre os quais Lévi-Strauss e Michel Foucault -, o primeiro Departamento de Psicanálise na Universidade com a "missão de ensino superior e pesquisa", visando transmitir tanto os saberes que emanam da experiência psicanalítica quanto os que lhe são conexos, já que "o saber freudiano não é redutível a um corpo de doutrina fechado e definitivamente constituído" (documentos do Departamento).

Foi pois com Lacan que, definitivamente, a psicanálise é oficialmente recebida na universidade, como resposta aos movimentos de 1968, selando novos tempos - tratava-se da Universidade de Vincennes que se sustentava de uma proposta revolucionária no ensino universitário. Quando agora o Mestrado em Psicanálise do Instituto de Psicologia da UERJ lança seu primeiro livro, isso não deixa de ser uma contribuição para os festejos do ano do centenário de nascimento de Jacques Lacan, talvez o mais importante leitor de Sigmund Freud no século XX. Foi uma longa tragetória até hoje, quando começam a surgir os primeiros produtos de grande investimento. Aposta também inovadora no sentido de explorar o binômio: clínica e pesquisa em psicanálise. Com efeito, a pesquisa psicanalítica, desde sua origem, verifica na clínica os avanços teóricos que, por sua vez, emanam de hipóteses que surgem durante o quotidiano da prática do psicanalista. Isso sempre foi levado em conta, com maior ou menor freqüência, pelas instituições psicanalíticas o que se pode ler nas muitas publicações sustentadas por aquelas instituições. Razão pela qual a experiência das instituições psicanalíticas, no que tange a transmissão da psicanálise, não deve ser, de forma alguma, relegada a um segundo plano pelo simples fato da existência, agora, de um lugar para a psicanálise na Universidade. Ao contrário, me parece que as instituições psicanalíticas continuam tendo o fundamental papel da verificação da política da psicanálise, agora mais importante ainda em decorrência do fato de que uma nova hegemonia - agora universitária - não coadunaria com a direção da aposta sempre inovadora que vem garantindo à psicanálise sua função na cultura desde o início do estabelecimento de suas teoria e prática, no final do século XIX. Razão também de apostar na interlocução, como vem fazendo o Mestrado na UERJ, com instituições psicanalíticas - esse mes, associando-se aos eventos preparatórios de "2001: A Odisséia Lacaniana", promovendo os debates sobre "Psicanálise e universidade" dia 28 de março próximo, às 19:30 hs, no auditório 13, 1o. and., da UERJ, e a conferência "A angústia no laço social" que a psicanalista francesa Colette Soler fará, dia 9 de abril, no mesmo horário e auditório da UERJ, na véspera do referido Colóquio. Ambas as entradas são francas o que é mais uma contribuição que a universidade dá à psicanálise, franqueando o acesso a seus desenvolvimentos também àqueles que jamais imaginaram poderem pagar seu preço.

Para terminar, a interlocução entre a psicanálise e a universidade, tal como nós a entendemos, tem por fim velar pela manutenção do próprio discurso do psicanalista que não se submete a regulamentos que, por melhores que possam ser, sempre trazem consigo perigos que podem ser bem maiores do que o exercício do charlatanismo de alguns. Não se regulamenta a psicanálise, enquanto se der liberdade a seu desenvolvimento, ela mesma poderá velar pela sua manutenção. A universidade como lugar do livre pensar só tem a ensinar sobre isso, permitindo que se juntem forças para a criação de campos cada vez maiores em que o exercício da psicanálise prolifere na contramão de movimentos segregacionistas e, sobretudo, na contramão de tentativas de se reduzir o alcance da psicanálise sumetendo-a quer seja a uma legislação, quer seja a certezas religiosas ou políticas na ilusão de que sua redução a modelos já conhecidos possa aumentar seu campo de ação - enorme ilusão já que qualquer redução da teoria e da prática psicanalítica a empobreceriam irremediavelmente, e a destruiriam. A psicanálise foi, é e será sempre um saber que nasceu do discurso da ciência, tendo todas suas raízes ancoradas nas vicissitudes contemporâneas da formulação do sujeito desde Descartes, mesmo se pode dialetizá-lo como dividido, descentrado, ou seja, como diria Lacan, ex-sistente.

Rio de Janeiro, 18 de março de 2001.

Sonia Alberti é Psicanalista, Coordenadora do Mestrado em Psicanálise na UERJ e membro da Associação Fóruns do Campo Lacaniano e de Formações Clínicas do Campo Lacaniano.

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