Voltar a la página principal de PsicoMundo Brasil
O analista e suas formações

José Nazar

á o clamor neurótico... e só Deus sabe o grau de suficiência com que isto se inscreve nos horizontes daquilo que tão tardiamente compareceu como o discurso psicanalítico: a psicanálise, naquilo que norteia a sua práxis como freudiana, é território particular dos neuróticos ...

A argumentação de que a prática psicanalítica seria tão abrangente e capaz de abarcar todos expedientes sintomáticos que emergem da extensiva economia psíquica só é válida se nos distanciarmos um pouco dos ensinamentos de Freud, que não cansou de demarcar os limites de ação dos instrumentos por ele inventados. Não estou dizendo com isto que a psicanálise não possa acolher pacientes que apresentam outros "sofrimentos psíquicos" que não aqueles das neuroses, pois tanto Freud como Lacan aconselhavam a utilização das ferramentas psicanalíticas para um tratamento possível de pacientes psicóticos e outras entidades ou estruturas clínicas.

Então, para o neurótico, a psicanálise é um bem supremo, à medida que responde à magistral suposição de um saber que lhe falta. Nesta suposição, o imaginário neurótico estabelece a crença de uma possível completude, onde se configurará a constituição de um casal quase perfeito: o psicanalista e seu paciente, juntos, na transferência. Do neurótico, "este ser tão incompreendido", sabemos até demais: assunto de uma mídia que o inferniza, é o próprio personagem de uma psicopatologia de nossa vida cotidiana. E é na égide ética de um soberano Woody Allen que vamos encontrar seu fiel apólogo, ou seja, aquele que tão bem soube nos dar o testemunho pleno daquilo que se poderia denominar o "drama de uma existência neurótica". Não se pode negar que este "drama" não seja tão fundamental, pois é na medida em que se escuta seu clamor que está fundado aquilo que se pode caracterizar do lugar do analista: o analista como fruto de um drama neurótico.

Mas do analista, o que dizer? Este ser enigmático, silencioso por essência, que nada fala de si! Quando o procuramos para uma análise, ele está ali... e até responde com uma voz. Tudo bem, encontramos isto que procuramos como analista, "encarnado" em alguém que desempenhará esta função. Não está em questão aqui se ele irá desempenhar bem ou mal esta função, posto que a cegueira neurótica é tão intensa que a arte do discernimento estará totalmente ofuscada no início de uma análise. Mais ainda, o fato de o analista ter o silêncio como seu parceiro de trabalho permitirá a ele esconder todas as suas insuficiências. Ou seja, o analista já está ali, no seu gabinete de trabalho... mas a questão que se coloca é: o que autoriza alguém a exercer a prática da psicanálise? Como é que se "faz" um analista? De que ele é fruto? De que planeta surge este ser tão enigmático?

Nós, psicanalistas, freqüentemente comparecemos, em público, com este ou aquele assunto. Algumas vezes até nos saímos bem... mas a questão é que nunca falamos de onde é que nos originamos! De onde vêm os analistas... de que matéria eles são feitos? Que órgão "forma" um analista, quais as regras e as leis que estão em jogo? Ou seja, existe, sim ou não?, algum órgão, uma "Ordem dos Psicanalistas" – tal como encontramos, por exemplo, a Ordem dos Advogados – que determinaria os rumos de uma "formação" do analista? O que me autoriza, ou melhor, o que me permite exercer a prática psicanalítica? Qual a lei que se coloca no exercício desta prática... qual o desejo em questão? Qual o Outro que encontramos implicado nesta questão?

As questões pertinentes à assim chamada "formação" do analista, nós as encontraremos nas primeiras relações de Freud com seus discípulos: a preocupação com o futuro da descoberta freudiana possibilitou um encaminhamento específico daquilo que seria a transmissão da psicanálise. Como a psicanálise se transmitiria de um para outro e quais as precauções devidas para que esta descoberta originária se mantivesse com sua devida virulência? Todos nós sabemos como as idéias de Freud encontraram fortes resistências em todos os segmentos sociais daquela época: identificavam nesta descoberta a ameaça de um perigo público, à medida que denunciava o mal-estar frente à sexualidade humana. A própria classe médica, da qual Freud fazia parte, reagiu com uma oposição absoluta para depois embarcar numa ambigüidade profunda: essa nova descoberta certamente cairia bem nas rédeas de uma ordem médica. Daí que durante muitas décadas a " formação" dos analistas somente dizia respeito a médicos.

Foi Freud o primeiro, o único: todo o exercício de uma prática dita psicanalítica, neste período germinal, passava, logicamente, por Freud:

alguns postulantes ao campo psicanalítico o procuravam e se submetiam a este novo "método terapêutico", buscando saber sobre o inconsciente;

outros mais distantes aproximavam-se do texto freudiano, suas primeiras publicações. O sujeito, ao se identificar com este ou aquele texto publicado por Freud (por exemplo, Sonhos, Histeria, Inconsciente, etc), logo se correspondia com o mestre de Viena, tornando-se um novo adepto, um postulante a essa nova descoberta.

Ora, o próprio Freud não se mostrava muito exigente em relação àqueles que desejam acompanhá-lo nesta aventura tão desconhecida e, na maioria das vezes, aconselhava ao postulante experimentar os efeitos do inconsciente de outrem, sem que necessitasse passar uma análise pessoal: chegado um momento específico, o postulante pediria sua ajuda de "análise", que poderia ser com ele, Freud. O que se tornava fundamental para o futuro analista era aptidão para reconhecer os mecanismos psíquicos do recalcamento, posto que Freud, nesta época, confundia inconsciente e recalque. Donde se pode dizer que, inicialmente, o Outro que respondia pelas questões do autorizar-se analista era Freud, que, como analista ou autor de textos sobre a psicanálise, respondia como uma lei, uma ordem, uma espécie de garantia para que se pudesse operar neste campo tão novo do saber.

Muito cedo, os analistas que seguiam Freud, a partir desta ou daquela argumentação, passaram a constituir "Institutos" para formar analistas, objetivando com isso não somente uma suposta "preservação" da prática psicanalítica, como também apresentando o intuito explícito de responder às demandas de "terapias" que proliferavam. Algumas regras são postas em jogo, estabelece-se uma rígida regulamentação dos processos de formação, criando-se modelos standard, que desobedeciam e desvirtuavam as orientações do próprio Freud que, também muito cedo, já alertara para os perigos das imitações, dos modelos. Freud preconizava que a prática analítica era da ordem do real, do novo, e que o analista deveria tomar cada caso como se nada soubesse dos anteriores, estimulando, com isso, a que os analistas não cedessem tão facilmente às aptidões do hábito. Dizia que todo saber já sabido, constituído, antecipado, este saber todo deveria ser posto em "esquecimento" para se poder escutar o novo, ou seja, aquilo que ele, o psicanalista, ainda não sabia.

Portanto, Freud, que verdadeiramente autorizava-se dele mesmo, já criticava os mecanismos de grupo que se constituíam a partir de normas e regras estabelecidas antecipadamente, ou seja, os elementos burocratizantes que impediam o surgimento do inconsciente e que são inerentes às instituições religiosas e militares. Freud sabia, e como sabia, que a transmissão da psicanálise se inscrevia a partir de uma outra ordem, uma ordem que jamais se estabeleceria como alguma coisa exterior ao desejo de um sujeito particular.

A partir desse processo de institucionalização inicial, já se estabeleceram algumas exigências básicas para se "formar" um analista: a análise pessoal, seminários e supervisões. Até aí tudo bem, pois essas exigências são aquelas minimamente necessárias para se constituir um analista. O que não se concebe é a maneira e a imposição institucionalizadas como isso comparecia. Acreditava-se que era possível estabelecer uma ordem, uma lei "exterior" ao desejo de um postulante, que se estabelecia como um verdadeiro dogma, no sentido de determinar os rumos de uma formação do analista. Um sujeito X, Manoel, por exemplo, buscaria um Instituto de Psicanálise porque apresentava o desejo de ser analista. Ora, o Outro garantidor dessa empreitada era logicamente o Instituto que, com suas regras, normas e leis (portanto, uma ordem) circunscrevia os ideais institucionais aos quais o Manoel iria se conformar, sem que houvesse nenhum questionamento sobre esse seu desejo de ser analista. Já a partir das entrevistas, e do processo de iniciação daí decorrente, Manoel se identificaria e permaneceria alienado aos ideais próprios das instituições: a máxima conformista.

Essa maneira clássica de conceber a "formação" do analista exclui aquilo que verdadeiramente está em questão no percurso de um postulante, a saber, o sujeito do inconsciente. A presença do sujeito numa "formação" permite o surgimento de um questionamento maior sobre esse doloroso trajeto, posto que, se ele é marcado por alguma coisa, isso só pode ser como perdas. Essa presença do sujeito como meio de questionamento constitui um percurso mais simbolizante onde o desejo de ser analista é colocado em questão.

O advento dos ensinamentos de Lacan modifica radicalmente o de que se trata na transmissão da psicanálise. Retomando o texto primordial de Freud escrito em 1920 ("Para-além do princípio do prazer"), no qual comparece a tese de uma pulsão de morte, Lacan vem enfatizar o fato de o sujeito ser dividido contra si mesmo, posto que a agressividade, muito antes de se dirigir para o "exterior", está voltada para o próprio sujeito. Então, para Lacan, o que realmente está em jogo na transmissão da psicanálise é o inconsciente, essa fenda, essa hiância estrutural que se marca como um não-saber. Longe de uma concepção simplista, onde o inconsciente pudesse ser concebido como algo substancializável, ou até mesmo da antiga idéia de um inconsciente como um reservatório de lembranças do passado que pudessem ser atualizadas no presente, o inconsciente freudiano inscreve-se como Outra Coisa: trata-se de alguma coisa que se marca por uma falta radical, uma hiância essencial, um buraco, uma ruptura que só se transmite na cura.

Daí que afirmação de Lacan de que "a psicanálise é intransmissível" (donde a necessidade de que cada analista reinvente a psicanálise, a cada momento) vem nos mostrar a impossibilidade de se transmitir, de se passar a psicanálise de um para o outro, a não ser... na análise pessoal. Não há como pegar o Manoel, colocá-lo numa instituição e formá-lo como analista. Nenhuma ordem ou lei "externa" é capaz disso. Mesmo que Manoel seja pleno de desejo de ser analista, caprichoso, obediente ao freqüentar os Seminários, as supervisões, a sua análise. Só isso não basta. Não é possível, por um processo linear de acumulação de saber, formar um analista. Donde se verifica que a transmissão da psicanálise só é possível na cura. Num processo de análise, o analisando poderá – ou não – passar a analista, é alguma coisa que se estabelece como sendo da ordem do contingencial O fato de o sujeito submeter-se a uma análise ou freqüentar uma instituição não é garantia para o advento de um analista. A única transmissão possível é transmissão de ruptura, de fenda... numa cura. Logo, não existe nenhuma garantia antecipada, pois tudo o que diz respeito à psicanálise se inscreve numa outra ordem lógica, a saber, do só-depois. Não há uma garantia que possa ser dada antecipadamente.

Ao afirmar que a formação que existe em psicanálise são as formações do inconsciente, Lacan desloca a questão da "formação" do analista para o plano do inconsciente, uma ordem interna ao desejo, ou seja, uma ordem ética. Este ato vem ensinar, àqueles que estão abertos à transmissão da psicanálise, que a passagem do psicanalisando a psicanalista só se concebe pelo viés de uma ética que é própria ao discurso analítico, a saber: o desejo do analista.

Na Proposição de 09 de outubro de 1967, Lacan nos enuncia o aforismo: "O analista só se autoriza por ele mesmo", ou seja, no momento do ato analítico, o analista não se garante de nenhum Outro: nenhuma intuição, nenhuma ordem... a não ser a do seu desejo enquanto estrutura, ou seja, o desejo do analista. Portanto, o autorizar-se analista, naquilo que de solidão se evidencia, não está adstrito a nenhuma outra ordem senão àquela referida ao estatuto ético do inconsciente. O desejo do analista, rastreando todo processo de uma autorização, não se pretende nem inocente nem vulgar. Este desejo, que tão bem instrui dialeticamente o projeto de uma instituição que se pretenda analítica, somente ele, na particularidade que se lhe confere, poderá reger o que diz respeito ao tornar-se analista e sua autorização. Este aforismo do autorizar-se analista por ele mesmo não exime o postulante de se entregar como corpo e alma a um processo de uma formação de analista, ou seja, de dar suas provas constantes, junto a seus pares, subditos à autoridade simbólica de uma teoria freudiana. A idéia tão inocente e pueril de que se possa fazer um analista fora do âmbito de uma instituição (a despeito da antinomia entre instituição e discurso analítico) é barrada de saída, a não ser que se "configure" um analista desviante.

A colocação de uma ordem na psicanálise, se é possível, passa necessariamente por modulações discursivas que se presentificam no leito mesmo de um percurso daquele que se candidata a um engajamento efetivo no texto freudiano: é como instalação de uma ética que se inscreverá na carne de um sujeito, o desejo do analista. Não se trata, portanto, de uma aventura inocente, em que o postulante a analista se isentaria de uma culpa originária, tal como se entrega passivamente nas mãos daqueles institutos que oferecem uma garantia soberana e antecipada para se concretizar uma "formação" de analista. Desejo de ser analista é radicalmente distinto de desejo do analista: enquanto o primeiro é mero assanhamento neurótico, daí sua condição de ser interpretável..., o segundo, o desejo do analista, interpretante em sua essência, comparece como a única sustentação possível para que haja uma transmissão da psicanálise: uma ordem ética. A ordem ou a lei, que me permite exercer a prática psicanalítica, é interna ao desejo.

A constituição de uma ordem "exterior" àquela do desejo do analista será a morte da psicanálise. A regulamentação da psicanálise somente se sustentaria a partir de um gesto perverso, que se consagraria num desvio ético, onde a canalha toda prenhe e tinta de boas intenções ensejaria a castração do desejo de Freud. A psicanálise somente poderá ser exercida por psicanalistas. Não importa a corrente teórica que dá um certo colorido e aspecto diferencial a este ou aquele grupo analítico. O que importa é a seriedade com que cada um se encaminha numa formação permanente. Psicanálise é psicanálise. Religião é religião. Aqui há uma antinomia radical.

José Nazar, é médico psiquiatra (Especialização e Mestrado na UFRJ), psicanalista, Membro da Escola Lacaniana de Psicanálise.

Para enviar a agenda de atividades de sua editorial,
ou qualquer outro tipo de informação, escreva a
brasil@psicomundo.com

PsicoMundo - La red psi en Internet